30.5.18

Waly Salomão: "Câmara de ecos"



Câmara de ecos

Cresci sob um teto sossegado,
meu sonho era um pequenino sonho meu.
Na ciência dos cuidados fui treinado.

Agora, entre meu ser e o ser alheio
a linha de fronteira se rompeu.



SALOMÃO, Waly. "Câmara de ecos". In:_____. "Algaravias: Câmara de ecos [1996]". In:_____. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.


27.5.18

Arthur Rimbaud: "Bonne pensée du matin" / "Bom augúrio matutino": trad. de Ivo Barroso



Bom augúrio matutino

Verão, às quatro da madrugada
O sono do amor ainda demora.
Sob os bosques dispersa a aurora
            O odor da noite festejada.

Mas lá, em seus imensos canteiros
De obras, em mangas de camisa,
Ao sol das Hespérides, já se agitam
            Os carpinteiros.

Em seus desertos de serragem,
Caros lambris preparam, lentos,
Em que a riqueza da cidade
          Verá falsos firmamentos.

Ah! por esses belos Fabricantes,
Súditos de um rei da Babilônia,
Vênus! deixa um pouco os Amantes
          Com as almas em coroa.

          Rainha dos Pastores!
   Dai-lhes o trago deste dia,
   Para que em paz recobrem forças
À espera do banho de mar, ao meio-dia.





Bonne pensée du matin

À quatre heures du matin, l'été,
Le sommeil d'amour dure encore.
Sous les bosquets, l'aube évapore
          L'odeur du soir fêté.

Mais là-bas dans l'immense chantier
Vers le soleil des Hespérides,
En bras de chemise, les charpentiers
          Déjà s'agitent.

Dans leur désert de mousse, tranquilles,
Ils préparent les lambris précieux
Où la richesse de la ville
          Rira sous de faux cieux.

Ah ! pour ces Ouvriers charmants
Sujets d'un roi de Babylone,
Vénus ! laisse un peu les Amants
          Dont l'âme est en couronne

          Ô Reine des Bergers !
  Porte aux travailleurs l'eau-de-vie.
  Pour que leurs forces soient en paix
En attendant le bain dans la mer, à midi.





RIMBAUD, Arthur. "Bonne pensée du matin" / "Bom augúrio matutino". In:_____. Poesia completa. Edição bilingue. Trad. de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.

25.5.18

Victor Colonna: "Curto-circuito"



Curto-circuito

De repente eu paro e olho: é ele!
Desengato marcha-a-ré crescente
Meu rosto fica roxo, vermelho
Desamarra-se o elo da corrente.

Curto-circuito, incêndio, tragédia!
Meu cabelo arrepiado espeta
Meu pulso desencapado te choca
Meu corpo endiabrado, capeta.

E meu peito pega fogo: é vida.
Um calor que se desprende e solta
Amor é caminho longo: é ida
É só ida. Não tem volta.




COLONNA, Victor. "Curto-circuito". In:_____. Cabeça, tronco e versos. Rio de Janeiro: Editora da Palavra, 2009.

22.5.18

"Mergulho": exposição de pinturas de Luiz Pizarro



Clique no cartaz, para ampliá-lo:

Leo Gonçalves: "Lição de shiatsu # 1"



Lição de shiatsu # 1

para massagem no ego:
usar a língua






GONÇALVES, Leo. "Lição de shiatsu # 1". In:_____. Use o assento para flutuar (segunda edição, revista e ampliada). Belo Horizonte: Crisálida, 2018.

20.5.18

Rogério Batalha: "Não se ouvia barulho"



Não se ouvia barulho

não se ouvia barulho
quando a lua deu colo às minhas ruínas
quando um verso represou minhas enchentes
não se ouvia barulho
quando as pedras me adotaram como filho
não se ouvia barulho
quando o andarilho fitou os olhos tristes
de sua aldeia
não se ouvia barulho
sobre os trapos que devoravam
a criança síria
morta
numa praia deserta.




BATALHA, Rogério. "Não se ouvia barulho". In:_____. Azul. Rio de Janeiro: TextoTerritório, 2016.

18.5.18

Friedrich Hölderlin: "Die Götter" / "Os deuses": trad. de Paulo Quintela



                            Os deuses

    Éter calmo! sempre bela me conservas
        A alma no meio da dor; e ante os teus raios,
            Hélios! se enobrece em valentia
                Muitas vezes o peito revoltado.

    Ó bons Deuses! pobre é quem vos não conhece;
        No peito rude nunca o dissídio se lhe acalma,
            E o mundo pra ele é noite, e nenhuma
                Alegria lhe medra nem canção nenhuma.

    Vós só, com vossa juventude eterna, mantendes
        Nos corações que vos amam a candura infantil,
            E não deixais que em cuidados e erros
                Jamais lhe morra no luto o Génio.



                            Die Götter

    Du stiller Aether! immer bewahrst du schön
        Die Seele mir im Schmerz, und es adelt sich
            Zur Tapferkeit vor deinen Strahlen,
                Helios! oft die empörte Brust mir.

    Ihr guten Götter! arm ist, wer euch nicht kennt,
        Im rohen Busen ruhet der Zwist ihm nie,
            Und Nacht ist ihm die Welt und keine
                Freude gedeihet und kein Gesang ihm.

    Nur ihr, mit eurer ewigen Jugend, nährt
        In Herzen, die euch lieben, den Kindersinn,
            Und laßt in Sorgen und in Irren
                Nimmer den Genius sich vertrauern.




HÖLDERLIN, Friedrich. "Die Götter" / "Os deuses". In:_____. Hölderlin: Poemas. Org. e trad. de Paulo Quintela. Coimbra: Atlântida, 1959.

[Hölderlin: Gedichte 1800-1804, S. 15. Digitale Bibliothek Band 75: Deutsche Lyrik von Luther bis Rilke, S. 54677 (vgl. Hölderlin-KSA Bd. 2, S. 16)]



15.5.18

Casimiro de Brito: "Velho como as flores"



100

Velho como as flores
o vinho respira
no meu copo.
Velho como as aves 
o tinto que bebo
com amigos
que partiram.





BRITO, Casimiro de. "Velho como as flores". In:_____. Arte de bem morrer.  Lisboa: Roma Editora, 2007.

13.5.18

Manuel Bandeira: "Porquinho da Índia"




Porquinho-da-Índia

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele prá sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…

— O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.




BANDEIRA, Maznuel. "Porquinho-da-Índia". In:_____. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967.

11.5.18

Adriano Nunes: "Maresia"

Agradeço a meu amigo Adriano Nunes pelo seguinte presente:


Maresia
                para Antonio Cicero


Vento do mar...
Não há sereias
Silentes, há
O sol na veia
Da verve, já
À vez se dar.
Passa o pensar...
A grã voz? Eia!
Passa-se a amar
O que incendeia
A vida, lá
Onde o ser há.
Vento no mar,
Quem nos rodeia
Está a par
De tudo, ou teima
Em duvidar
Do som ao ar?
O sentir dá
Mil voltas e, à
Flor do olhar,
Sonhos semeia.
O que mais há
Além do lar?




Adriano Nunes

9.5.18

Eugénio de Andrade: "As mãos e os frutos"



As mãos e os frutos

Shelley sem anjos e sem pureza,
Aqui estou à tua espera nesta praça,
Onde não há pombos mansos mas tristeza
E uma fonte por onde a água já não passa.

Das árvores não te falo pois estão nuas;
Das casas não vale a pena porque estão
Gastas pelo relógio e pelas luas
E pelos olhos de quem espera em vão.

De mim podia falar-te, mas não sei
Que dizer-te desta história de maneira
Que te pareça natural a minha voz.

Só sei que passo aqui a tarde inteira
Tecendo estes versos e a noite
Que te há-de trazer e nos há-de deixar sós.




ANDRADE, Eugénio de. "As mãos e os frutos". In: BERARDINELLI, Cleonice (org.). Cinco séculos de sonetos portugueses: de Camões a Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.

7.5.18

Armando Freitas Filho: "A tarde precipita sua cor"




A tarde precipita sua cor 
cai, no começo 
      no princípio da noite 
e o que ainda aqui resiste 
meio fera, ao precipício 
ficou na beira da taça 
que não suporta mais 
sequer um riso 
pois todo cristal está sempre
na iminência, um minuto antes
            de partir.





FREITAS FILHO, Armando. "A tarde precipita sua cor". In:_____. Uma antologia. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2006.

5.5.18

Hart Crane: "Medusa": trad. de Augusto de Campos




Medusa



“Caia comigo

Nas estrelas frígidas

Caia comigo

Na luz do delírio

Mergulhe

Onde não há canção

Salvo as cãs dos ventos velhos.


Siga-me

Até o fim,

Até o caos estonteante

O eterno caos fervente

Dos meus cabelos!


Contemple a sua amante, –

Pedra!”




Medusa


"Fall with me

Through the frigid stars:

Fall with me

Through the raving light: –

Sink

Where is no song

But only the white hair of aged winds.



Follow

Into utterness,

Into dizzying chaos, –

The eternal boiling chaos

Of my locks!



Behold thy lover, -

Stone!"





CRANE, Hart. "Medusa". In: CAMPOS, Augusto de (org. e trad.). Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006.

3.5.18

Jorge Luis Borges: "Laberinto" / "Labirinto": trad. de Augusto de Campos



Labirinto

Não haverá nunca uma porta. Já estás dentro.
E o alcácer abarca o universo
E não tem anverso nem reverso
Não tem extremo muro nem secreto centro.

Não esperes que o rigor do teu caminho
Que fatalmente se bifurca em outro,
Que fatalmente se bifurca em outro,
Terá fim. É de ferro teu destino

Como o juiz. Não creias na investida
Do touro que é um homem cuja estranha
Forma plural dá horror a essa maranha

De interminável  pedra entretecida.
Não virá. Nada esperes. Nem te espera
No negro crepúsculo uma fera.





Laberinto

No habrá nunca una puerta. Estás adentro
Y el alcázar abarca el universo
Y no tiene ni anverso ni reverso
Ni externo muro ni secreto centro.

No esperes que el rigor de tu camino
Que tercamente se bifurca en otro,
Que tercamente se bifurca en otro,
Tendrá fin. Es de hierro tu destino

Como tu juez. No aguardes la embestida
Del toro que es un hombre y cuya extraña
Forma plural da horror a la maraña

De interminable piedra entretejida.
No existe. Nada esperes. Ni siquiera
En el negro crepúsculo la fiera.




BORGES, Jorge Luis. "Laberinto" / "Labirinto". In: CAMPOS, Augusto de. Quase Borges. 20 transpoemas e uma entrevista (organização e tradução). São Paulo: Terracota, 2013.

1.5.18

Jacques Prévert: "Quand..." / "Quando...": trad. de Silviano Santiago



Quando...

Quando o leãozinho almoça
a leoa rejuvenesce
Quando o fogo exige a sua parte
a terra enrubesce
Quando a morte lhe fala do amor
a vida estremece
Quando a vida lhe fala da morte
o amor sorri.




Quand...

Quand le lionceau déjeune
la lionne rajeunit
Quand le feu réclame sa part
la terre rougit
Quand la mort lui parle de l’amour
la vie frémit
Quand la vie lui parle de la mort
l’amour sourit.





PRÉVERT, Jacques. "Quand..."/"Quando". In:_____. Poemas. Seleção e trad. de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.