30.4.14

Ricardo Cabús: "Não sei o quanto de mim sou mulher"




Não sei o quanto de mim sou mulher

Não sei o quanto de mim sou mulher
Se na lágrima que deita calada
numa manhã cinzenta
Se na inconstância do desejo
que nuveia a tristeza

Não sei o quanto de mim sou mulher
Se no querer-me livre
assim como os outros
Se no querer-me onipresente
assim como Ele
Não sei...

Sei que de tanto gostar
carregá-la em mim
faz-me feliz



CABÚS, Ricardo. Cacos inconexos. Maceió: Instituto Lumeeiro, 2010.

28.4.14

Vielimir Khliébnikov: "Hoje de novo sigo a senda"





Hoje de novo sigo a senda
Para a vida, o varejo, a venda,
E guio as hostes da poesia
Contra a maré da mercancia.



KHLIÉBNIKOV, Vielimir. "Hoje de novo sigo a senda". Trad. Augusto de Campos. In: CAMPOS, Ausgusto de; CAMPOS, Haroldo de; SCHNAIDERMAN, Boris. Poesia Russa Moderna.São Paulo: Perspectiva, 2012.

26.4.14

Noemi Jaffe: "Teimosa humanidade"


O seguinte -- excelente -- artigo da Noemi Jaffe foi publicado na Folha de São Paulo no dia 24 de abril de 2014. Agradeço ao Nobile José por me ter chamado atenção para ele:



Teimosa humanidade

Ridicularizar o desejo de mudança social, simplificá-lo com o epíteto de 'esquerda' e atribuir-lhe o objetivo de 'pegar mulher' só revela frustrações

Não se trata mais de responder às falácias generalistas do colunista Luiz Felipe Pondé, que escreve às segundas-feiras no caderno "Ilustrada". Seria atender exatamente ao desejo, implícito em suas acusações, de polemizar gratuitamente.

O caso, agora que todos os limites de respeitabilidade foram ultrapassados, é falar não sobre o que ele escreve, mas como despeja seus impropérios. Trata-se de leviandade --um tratamento ligeiro, vão e vazio com relação à linguagem, ao próximo e a temas a que a humanidade teima em dar seriedade para continuar se considerando humana.

Há tempos que o colunista tripudia, sem graça, daquilo que chama de "querer o bem", "querer melhorar ou mudar o mundo". Em seu mais recente artigo ("Por uma direita festiva", 21/4), chega a dizer que falas como "o capital mata crianças de fome na África" servem para "pegar" mulher.

O colunista acredita se valer de falas pretensamente engraçadas, que na sua cabeça reproduzem o discurso de uma esquerda pasteurizada, para novamente ridicularizar quem se preocupa com a fome na África. Seria desperdício exemplificar outras falas da suposta esquerda que o colunista, cafona e infantilmente, procura reproduzir.

Gostaria de discutir a leviandade do tratamento jocoso às ideias de "fazer o bem" e "querer um mundo melhor", tratadas como típicas de uma esquerda cujo maior desejo é "pegar mulher". Parece que esses pensamentos nunca passariam de inocência ou demagogia disfarçada, em sua visão pretensamente schopenhauriana, machadiana ou rodrigueana de alguém cuja maturidade filosófica o levou a saber que nada nunca muda para melhor.

Schopenhauer fala, em seu conceito de "ética metafísica", do fenômeno da compaixão, ou identificação total com a dor do outro, o que representaria a afirmação plena e consciente do "querer". Nelson Rodrigues dizia que até o mais descarado canalha deve ter seus momentos de compaixão, sonho, amor ou pena. Machado de Assis, o que é nada menos que óbvio para qualquer bom leitor de sua obra, é sempre dialeticamente pessimista. Ou seja, seu pessimismo de base comporta inevitavelmente uma denúncia ou um inconformismo moral.

Provavelmente, os três autores seriam considerados pelo colunista leviano, a partir desse ponto de vista, como "esquerdinhas interessados em pegar mulher".

O desejo de mudar e de melhorar o mundo não é de esquerda nem de direita. A compaixão pelos que passam fome --malgrado sua ineficácia prática-- é um índice mínimo do humano no humano. Mas, para além da ingenuidade desses desejos e sentimentos, há neles também o possível e o praticável.

Hoje, melhorar a vida e o mundo consiste basicamente em preocupar-se em minimizar a desigualdade social e econômica. Desacreditar dessa possibilidade e, pior, desdenhá-la significa justificar o autoritarismo e sua fonte primária, o medo, aquele que mora em todos nós e que só a civilidade e a cultura são capazes de inibir. Ridicularizar o desejo de mudança social, simplificá-lo com o epíteto de "esquerda" e justificá-lo como "para pegar mulher" só revela as frustrações de quem utiliza esses pretensos argumentos.

O melhor, diante de tanto cinismo, seria se calar. Mas devo confessar minha fraqueza.

Noemi Jaffe

24.4.14

Helio Jaguaribe: "O 'jardim antropológico' é uma insensatez"



Ontem recebi um convite para participar de uma manifestação do movimento "Índio É Nós". Tendo lido o Manifesto desse movimento, considero-o inteiramente equivocado. Minha posição, nesse ponto, aproxima-se da de Helio Jaguaribe. Eis aqui um excelente artigo dele publicado originalmente no dia 26 de abril de 2008, na Folha de São Paulo, e ainda atual, sobre essa questão.



As terras indígenas são uma ameaça à soberania nacional?

SIM

O "jardim antropológico" é uma insensatez

HELIO JAGUARIBE

TODOS OS países americanos se confrontaram com a questão indígena. É indiscutível que em todos eles a relação entre europeus colonizadores e a população nativa foi originariamente conflituosa. Esse conflito conduziu ao extermínio das populações costeiras (Brasil), levando os nativos a se refugiarem no interior remoto de cada um desses países.

É a partir sobretudo do século 19 que se diferenciam a conduta dos europeus e a de seus descendentes nas Américas. Nos EUA, a opção da população branca foi o extermínio dos nativos: "a good indian is a dead indian".

O Brasil não teve política indigenista até o início do século 20. O índio foi romantizado por José de Alencar e outros. Mas a conduta real, por parte dos que se adentraram pelo Oeste, foi de espoliação das terras indígenas, com violenta expulsão dos nativos.

A política indigenista no Brasil não foi, originariamente, formulada pelo governo federal, e sim por esse grande pioneiro que foi o general Rondon.

Encarregada da extensão das linhas telegráficas até Cuiabá, a Missão Rondon, como foi designada, se defrontou com as populações indígenas do interior do país. A política adotada por Rondon foi a de total respeito aos índios, reconhecidos como legítimos proprietários das terras.

Meu saudoso pai, general Francisco Jaguaribe de Mattos, então jovem capitão, foi o geógrafo e cartógrafo da missão. Dele tenho narrativas diretas de como se procedia então. Seus membros, nos freqüentes encontros com os índios, os abordavam pacificamente, incorporando os que desejassem. O lema de Rondon era: "Morrer se necessário, matar, nunca".

A política indigenista de Rondon partia do suposto de que o índio era o brasileiro nativo, que devia ser tratado respeitosamente pelos civilizados e induzido, pacificamente, a se incorporar à cidadania, recebendo conveniente educação e assistência.

A República manteve a política indigenista de Rondon. De acordo com suas idéias (ele mesmo tendo ascendência indígena), estimava-se que, gradualmente, a total população indígena, ora da ordem de 700 mil entre 190 milhões de habitantes, seria incorporada à cidadania brasileira.

Em anos mais recentes, a política indigenista brasileira passou a ser orientada por etnólogos. Estes, diversamente de Rondon, não intentavam a pacífica incorporação do índio, mas a preservação das culturas indígenas. Para isso, adotou-se a prática da delimitação de amplas áreas nos sítios povoados por índios, como reservas.

A política de reservas vem sendo aplicada sem levar em conta os imperativos de defesa nacional, o que ocorre nos diversos casos em que elas se estendem até nossas fronteiras com países vizinhos. As autoridades militares têm alertado o governo, com toda a razão, sobre o perigo da prática.

Por essas e outras razões, a política indigenista brasileira requer uma urgente a ampla revisão. Desde logo, independentemente da nova orientação que se lhe dê, é preciso estabelecer uma faixa que acompanhe as fronteiras do Brasil com outros países e dela excluir as reservas indígenas. Em termos mais amplos, importa questionar: que objetivos deve ter tal política, ademais da proteção do índio?

Por outro lado, a perpetuação de culturas nativas, em que se fundamenta, no Brasil, a política de reservas, carece de sentido em termos antropológicos, pois é impossível sustar o processo civilizatório. As populações civilizadas do mundo são descendentes de populações tribais, que seguiram, em todos os países, o secular caminho que leva paleolíticos a se transformarem em neolíticos e estes, em civilizados. 
Criar um "jardim antropológico", à semelhança de um jardim zoológico, é uma insensatez. Cabe ao governo federal zelar pela unidade do país, e não contribuir para autonomizar supostas nações indígenas que, no limite do caso, poderiam apelar para a ONU para lhes salvaguardar a independência e ser objeto de penetração estrangeira.


A nossa política indigenista não pode ter outro objetivo senão o da incorporação pacífica do índio à cidadania brasileira, para tal lhe dando toda a assistência requerida: sanitária, educacional e profissional. 




22.4.14

Marcelo Diniz: "Litorânea"






Litorânea

O mar respira no litoral,
um pulmão que não é meu
ouço inchar-se na areia,
derramar-se, devolvendo-se,
perigoso chamado: — você
não tem história e, ainda
que tivesse, nada é seu
nesta cidade, números,
cifras, senhas sem milagre,
nada é seu, muito menos
este corpo que se banha
e se encanta com as sílabas
incontáveis de um murmúrio
que espera seu retorno
com eterna paciência.



DINIZ, Marcelo. Cosmologia. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.

Luís Miguel Nava: "Paixão"






Paixão

Ficávamos no quarto até anoitecer, ao conseguirmos
situar num mesmo poema o coração e a pele quase podíamos
erguer entre eles uma parede e abrir
depois caminho à água.

Quem pelo seu sorriso então se aventurasse achar-se-ia
de súbito em profundas minas, a memória
das suas mais longínquas galerias
extrai aquilo de que é feito o coração.

Ficávamos no quarto, onde por vezes
o mar vinha irromper. É sem dúvida em dias de maior
paixão que pelo coração se chega à pele.
Não há então entre eles nenhum desnível.



NAVA, Luís Miguel. "Paixão". In: PEDROSA, Inês (org.). Poemas de amor. Antologia de poesia portuguesa. Lisboa: Dom Quixote, 2005.

18.4.14

Rose Ausländer: "Raum" / "Espaço": trad. Antonio Cicero




Espaço


Ainda há espaço

para um poema


Ainda é o poema

um espaço


Onde se pode respirar



Raum


Noch ist Raum

für ein Gedicht


Noch ist das Gedicht

ein Raum


Wo man atmen kann




AUSLÄNDER, Rose. Gedichte. Duisburg: Gilles und Francke, 1976.

15.4.14

João Cabral de Melo Neto: "A rima..."






A rima é algo necessário. Valéry me convenceu de que, para se criar algo, é necessário um esforço. Um obstáculo diante do ser o obriga a muito mais esforço e faz com que ele atinja o seu extremo. Para mim, a rima é uma necessidade que precisa se impor.



MELO NETO, João Cabral de. In: ATHAYDE, Félix de. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: FBN - UMC - Nova Fronteira, 1998.

13.4.14

Antonio Cicero: "Desejo"





Desejo

Só o desejo não passa
e só deseja o que passa
e passo meu tempo inteiro
enfrentando um só problema:
ao menos no meu poema
agarrar o passageiro.



CICERO, Antonio. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.

10.4.14

Alex Varella: "A invenção do nome"




 A invenção do nome 
 
 
 
Quando criança, achava bonito. Tinha certa imponência.
 
Alex Vítor Pessoa Varella, o meu nome.
 
“Alex”, diziam em casa, era homenagem ao doutor Alexis Carrel,  médico russo
 
 ( ou seria francês?), autor de “O homem, Esse Desconhecido”.
 
 Para os incrédulos, tínhamos um livro do tal russo, na biblioteca de meu pai.
 
Alex era nome raro de botar numa criança e requeria justificação.
 
“Vítor”, não havia dúvidas, era uma escolha puramente sonora de meu pai orador
 
e compositor de sonetos, que promovia torneios literários e saraus em casa,
 
misturados a sessões espíritas de desmaterialização.
 
Como “Pessoa”, o poeta rosa-cruz, meu mais notável antecessor,
 
espero que também me façam um busto ( que já estou a merecer! ) como aquele da Brasileira, no Chiado, em Lisboa, mas diferentemente daquele, que mude de lugar a cada dia, como a identidade do parente poeta.
 
Quanto à herança do romântico, o Fagundes (Varella),
 
Nem morrer de tuberculose, nem acabar nome de rua em Niterói!
 
Os deuses vêm me visitar. E eu os recebo a beira mar.
 
 

VARELLA, Alex. "A invenção do nome". Inédito.

7.4.14

William Shakespeare: "Sonnet 56" / "Soneto 56": trad. Adriano Nunes





Sonnet 56

Sweet love, renew thy force; be it not said
Thy edge should blunter be than appetite,
Which but today by feeding is allay'd,
Tomorrow sharpen'd in his former might:
So, love, be thou; although today thou fill
Thy hungry eyes even till they wink with fullness,
Tomorrow see again, and do not kill
The spirit of love with a perpetual dullness.
Let this sad interim like the ocean be
Which parts the shore, where two contracted new
Come daily to the banks, that, when they see
Return of love, more blest may be the view;
Else call it winter, which being full of care
Makes summer's welcome thrice more wish'd, more rare.


SHAKESPEARE, William. The sonnets and A Lover's Complaint. Edited by John Kerrigan. London: Penguin Classics, 2009.



Soneto 56

Doce amor, renova-te; que não seja dito
Ser mais cego teu gume que teu apetite,
Que está saciado por ter hoje comido,
Mas amanhã co' antiga força está em riste.
Assim, amor, sê tu; embora bem se fartem
A piscar, plenos, teus olhares esfaimados,
Amanhã enxerguem novamente, e não matem
O espírito do amor com um perpétuo enfado.
Deixa este triste ínterim como o mar ser
Que separa a praia, onde um nubente par
Vem à orla diariamente, e por ver
O retorno do amor, mais ditoso é o olhar.
Ou então o inverno, que cheio de cuidado
Faz o verão três vezes mais raro e almejado.


Tradução de Adriano Nunes

6.4.14

Nora Rónai: trecho de entrevista





Amigas minhas foram abençoadas pelo dom da fé. Eu fui abençoada pelo dom da dúvida. Sempre achei essa história de Deus muito mal contada.



RÓNAI, Cora. "Braçadas de uma 'brasileira de coração'". Entrevista. O Globo, caderno Rio, seção "Perfil". Rio de Janeiro, 6 de abril de 2014.

5.4.14

Carlos Drummond de Andrade: "As rosas do tempo"




As rosas do tempo


Admirável espírito dos moços,
a vida te pertence. Os alvoroços,

as iras e entusiasmos que cultivas
são as rosas do tempo, inquietas, vivas.

Erra e procura e sofre e indaga e ama,
que nas cinzas do amor perdura a flama.




ANDRADE, Carlos Drummond de. “Viola de bolso”. In:_____. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.


3.4.14

William Shakepeare: "Sonnet LV" / "Soneto LV": trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos






Sonnet LV


Not marble, nor the gilded monuments

Of princes, shall outlive this powerful rime;

But you shall shine more bright in these contents

Than unswept stone, besmear’d with sluttish time.

When wasteful war shall statues overturn,

And broils root out the work of masonry,

Nor Mars his sword nor war’s quick fire shall burn

The living record of your memory.

’Gainst death and all-oblivious enmity

Shall you pace forth; your praise shall still find room

Even in the eyes of all posterity

That wear this world out to the ending doom.

  So, till the judgment that yourself arise,

  You live in this, and dwell in lovers’ eyes.





Soneto LV


De mármore não sei, nem de áureos monumentos

Que sobrevivam ao meu canto poderoso:

O tempo mancha a pedra, enquanto em meus acentos

Tu sempre ostentarás um brilho vigoroso.

Quando estátuas a guerra infrene derruir

E as próprias construções das bases arrancar,

Não poderão espada ou fogo destruir

Este arquivo imortal que te há de relembrar.

Indiferente a morte e a olvido hás de viver,

E encontrará guarida o teu louvor supremo

No olhar das gerações que se hão de suceder

Até que o mundo atinja o seu momento extremo.

   Assim, até o juízo em que despertarás,
   Em meu verso e no olhar dos que amam viverás.




SHAKESPEARE, William. Sonetos. Org. e trad. De Péricles Eugénio da Silva Ramos. São Paulo: Hedra, 2008.

2.4.14

Antonio Carlos Secchin: "Sagitário"





Sagitário

Evite excessos na quarta-feira,
modere a voz, a gula, a ira.
Saturno conjugado a Vênus
abre portas de entrada
e armadilhas de saída.
Evite apostar em si, mas, se quiser,
jogue a ficha em número
próximo do zero. Evite acordar
o incêndio implícito de cada fósforo.
E quando nada mais tiver a evitar
evite todos os horóscopos.



SECCHIN, Antonio Carlos. Todos os ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.