30.1.14

Arthur Rimbaud: "Obscur et froncé comme un oeillet violet" / "Franzida e obscura flor, como um cravo violeta": trad. Ivo Barroso




Franzida e obscura flor, como um cravo violeta,
Respira, humildemente anichado na turva
Relva úmida de amor que segue a doce curva
Das nádegas até ao coração da greta.

Filamentos iguais a lágrimas de leite
Choraram sob o vento ingrato que as descarna
E as impele através de coágulos de marna
Para enfim se perder na rampa do deleite.


Meu sonho tanta vez se achegou a essa venta;
Do coito material, minha alma ciumenta
Fez dele um lacrimal e um ninho de gemidos.

É a oliva extasiada e a flauta embaladora,
O tubo pelo qual desce o maná de outrora,
Canaã feminil dos mostos escondidos.




Obscur et froncé comme un œillet violet,
Il respire, humblement tapi parmi la mousse
Humide encor d'amour qui suit la fuite douce
Des fesses blanches jusqu'au cœur de son ourlet.
Des filaments pareils à des larmes de lait
Ont pleuré sous l’autan cruel qui les repousse,
À travers de petits caillots de marne rousse
Pour s'aller perdre où la pente les appelait.
Mon rêve s'aboucha souvent à sa ventouse;
Mon âme, du coït matériel jalouse,
En fit son larmier fauve et son nid de sanglots.
C'est l'olive pâmée, et la flûte câline ;
C'est le tube où descend la céleste praline :
Chanaan féminin dans les moiteurs enclos.




RIMBAUD, Arthur. "Les stupra" / "Os stupra". In: Poesia completa. Edição bilingue. trad.: Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994.

28.1.14

Adriano Nunes: "Solidão"




Agradeço a meu amigo Adriano Nunes por me ter dedicado o seguinte, belo poema:



Solidão


                                   para Antonio Cicero

Na solidão da minha casa,
Cada coisa está acompanhada.
Garfo e faca,
Sala e sofá,
Terno e traça, 
Rádio e rack,
Medo e máscaras. 

Para lá, 
Para cá,
Só eu ando 
Procurando
Os fragmentos da minha alma
Perante as pétalas das dálias
Do grande jardim que não há,

Para ir ter comigo, para
Ter-me como o meu próprio par.
Na solidão da minha fala,
Vê, é quase
Tudo ou nada!
A palavra 
Velada, a palavra que vale,

A palavra
Relida, a palavra lacrada,
Palavra que parece dar
Outra palavra, um canto, mas,
Súbita, sagaz, à socapa,
Essa palavra que se traça
Logo escapa.




NUNES, Adriano. "Solidão". http://astripasdoverso.blogspot.com.br/2012/09/adriano-nunes-pela-palavra-para-antonio.html

25.1.14

Cacaso; "Happy end"



Happy end

o meu amor e eu
nascemos um para o outro

agora só falta quem nos apresente



Cacaso. Beijo na boca. Rio de Janeiro: Sette Letras, 2000.

23.1.14

T.S. Eliot: "IV. Death by water" / "Morte por água": trad. Ivan Junqueira




IV. Morte por água

Flebas, o Fenício, morto há quinze dias,
Esqueceu o grito das gaivotas e o marulho das vagas
E os lucros e os prejuízos.
                                           Uma corrente submarina
Roeu-lhe os ossos em surdina. Enquanto subia e descia
Ele evocava as cenas de sua maturidade e juventude
Até que ao torvelinho sucumbiu.
                                                      Gentio ou judeu
Ó tu que o leme giras e avistas onde o vento se origina,
Considera a Flebas, que foi um dia alto e belo como tu


ELIOT, T.S. "A terra desolada" In:_____. Poesia. Trad. de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.



IV. Death By Water

Phlebas the Phoenician, a fortnight dead,
Forgot the cry of gulls, and the deep sea swell
And the profit and loss.
                                       A current under sea
Picked his bones in whispers. As he rose and fell
He passed the stages of his age and youth
Entering the whirlpool.
                                      Gentile or Jew
O you who turn the wheel and look to windward,
Consider Phlebas, who was once handsome and tall as you.



ELIOT, T.S. "The waste land". In:_____. The complete poems and plays. New York: Harcourt, Brace & World, Inc., 1971.

21.1.14

Philip Larkin: "Annus mirabilis": trad. Rui Carvalho Homem





Annus mirabilis

Só começou a haver sexo
Em mil novecentos e sessenta e três
(Para mim, tarde demais) —
Entre o fim do interdito
De Lady Chaterley's Lover
E o primeiro LP dos Beatles.

Até então, tinha sido
Uma espécie de regateio
Por uma aliança e um parceiro,
Vergonha que tinha início
Ao chegar aos dezasseis
E alastrava sem freio.

E de repente, acabou:
Sensações iguais pra todos,
E cada vida a tornar-se
Por igual, sem distinção,
A sorte grande; um jogo
De fortuna e sem azares.

Não há vida como após
Mil novecentos e sessenta e três
(Para mim, tarde de mais) —
Entre o fim do interdito
De Lady Chaterley's Lover
E o primeiro LP dos Beatles.



Annus Mirabilis

Sexual intercourse began
In nineteen sixty-three
(which was rather late for me) –
Between the end of the Chatterley ban
And the Beatles' first LP.

Up to then there'd only been
A sort of bargaining,
A wrangle for the ring,
A shame that started at sixteen
And spread to everything.

Then all at once the quarrel sank:
Everyone felt the same,
And every life became
A brilliant breaking of the bank,
A quite unlosable game.

So life was never better than
In nineteen sixty-three
(Though just too late for me) –
Between the end of the "Chatterley" ban
And the Beatles' first LP.




LARKIN, Philip. Janelas altas. Trad. de Rui Cavalho Homem. Lisboa: Cotovia, 2004.

19.1.14

Ricardo Aleixo: Cine-olho




Cine-olho

Um
menino
não.
Era
mais um
felino,
um
Exu
afelinado
chispando
entre
os
carros
-
um
ponto
riscado
a
laser
na
noite
de
rua
cheia
-
ali
para
os
lados
do
Mercado




ALEIXO, Ricardo. A roda do mundo. Belo Horizonte: Mazza, 1996.

17.1.14

Ferreira Gullar: "O que se foi"





O que se foi


O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.

Se o que foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.

Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.

Então por que me faz
o coração bater tão forte?



GULLAR, Ferreira. Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

15.1.14




Eis o vídeo da conferência sobre "O contemporâneo e o moderno", que, a convite do Professor João Camillo Penna, pronunciei no Colóquio do Contemporâneo, por ele organizado, em novembro do ano passado, na UFRJ. A meu lado encontra-se o Professor Alberto Pucheu, que foi quem me recebeu e apresentou aos ouvintes.


Horácio: Ode I.xxxviii





Ao reler a tradução que, anos atrás, fiz da Ode I.xxxviii de Horácio, achei-a fraca. 
Acabo de fazer outra, que penso ser um pouco melhor. Ei-la:


Ode I.xxxviii

Odeio, rapaz, ostentações persas
e não me agradam coroas de tília;
deixa de procurar em pleno inverno
rosas serôdias.

Que te sirva de enfeite o simples mirto
é o que desejo: nem de ti, a servir,
destoa o mirto, nem de mim, a beber
sob harta vinha.




Carmen I.xxxviii

Persicos odi, puer, adparatus,
displicent nexae philyra coronae,
mitte sectari, rosa quo locorum
sera moretur.

simplici myrto nihil adlabores
sedulus curo: neque te ministrum
dedecet myrtus neque me sub arta
vite bibentem. 



HORACE. The odes. Org. por Kenneth Quinn. London: Macmillan, 1985.

13.1.14

Demétrio Magnoli: "O arco, a flecha e o avião"




No dia 11 de janeiro, a Folha de São Paulo publicou o seguinte, excelente artigo de Demétrio Magnoli:



O arco, a flecha e o avião

Dois índios nus, pintados de urucum, arcos retesados, apontam suas flechas para o avião que os fotografava. A força magnética daquela imagem, divulgada em 2008, deriva de suas ressonâncias culturais, que tocam nos nervos do binômio natureza/civilização, o núcleo pulsante da narrativa romântica ocidental. Eis a Amazônia, sussurra uma voz dentro de nós. A voz está errada. Aqueles índios isolados existem, mas a Amazônia é outra coisa: o fruto do encontro entre ondas migratórias recentes e indígenas deslocados por quatro séculos de colonização. O conflito étnico em Humaitá, ponta emersa de tensões explosivas e difusas, decorre da decisão política de rejeitar a história em nome do mito.

Esqueça a lenda do paraíso isolado: a economia-mundo englobou a Amazônia no sistema de intercâmbios globais desde que Manaus tornou-se um porto de navios oceânicos, no anoitecer do século 19. Esqueça a lenda dos "povos da floresta": a Amazônia foi ocupada por pioneiros do Nordeste e do Centro-Sul em dois ciclos sucessivos, entre 1880 e 1920 e de 1942 em diante. Esqueça a lenda das tradições imemoriais: as festas folclóricas da região, surgidas décadas atrás, refletem as extensas mestiçagens entre os colonos e deles com os povos autóctones. A pureza está na foto, o vislumbre de uma relíquia, um instantâneo vestigial. Os Tenharim, conta-nos o repórter Fabiano Maisonnave, são evangélicos, moram em casas de madeira com eletricidade, deslocam-se em motos, torcem pelo Flamengo e pelo Corinthians. Por que traçar uma fronteira étnica intransponível separando-os dos demais habitantes de Humaitá?

Quem é índio? De acordo com o Retrato Molecular do Brasil, de Sérgio D. Pena, 54% dos "brancos" da Região Norte apresentam linhagens maternas ameríndias. O Censo 2010 registrou taxas espantosas de crescimento anual da população indígena do Acre (7,1%), de Roraima (5,8%) e do Amazonas (4,1%), interpretadas pelo IBGE como "etnogênese" ou "reetinização": o resultado de mudanças em massa na opção de autodeclaração étnica estimuladas pelas políticas raciais. Na Amazônia, redefinir-se como indígena tornou-se uma estratégia destinada a obter segurança fundiária, cotas preferenciais e privilégios extraordinários (como o de cobrar pedágios em rodovias federais). Os caboclos amazônicos, que são meio-índios, reagem declarando-se inimigos dos índios. Aí estão as raízes políticas da "guerra de Humaitá".

Quem é índio? Telma Tenharim, mulher do cacique cuja morte acendeu a faísca das violências em Humaitá, "uma mulher miúda com poucos traços indígenas", é filha do primeiro branco que teria entrado em contato com o grupo, nos anos 1940. Segundo a clássica definição de Darcy Ribeiro, índio é o indivíduo "reconhecido como membro por uma comunidade pré-colombiana que se identifica etnicamente diversa da nacional" e, ainda, "considerado indígena pela população brasileira com quem está em contato". A política indígena oficial, capturada por ONGs racialistas e entidades missionárias, é uma pedagogia de "reetinização" que se nutre das carências sociais e fabrica o conflito étnico.

"Em nenhum momento a gente falou que meu pai foi assassinado. A gente viu que ele caiu da moto." As palavras de Gilvan, filho do cacique morto, confirmam as conclusões da perícia policial, mas contrastam com o texto do coordenador regional da Funai, Ivã Bocchini, postado no blog do órgão, que sugeria a hipótese de assassinato. O cacique "era como um chefe de Estado", escreveu Bocchini, exigindo que "seja apontada a verdadeira causa da morte" e celebrando "a luta do povo Tenharim".

Um "chefe de Estado" com o arco retesado e a flecha apontada para o avião dos intrusos "brancos": nessa imagem falsa, construída pelas políticas estatais de raça, encontram-se as sementes do ódio entre caboclos-índios e índios-caboclos.


                                                                                                                       Demétrio Magnoli

Ibn Sara As-SantarinÍ: "Jovem formoso"





Jovem hermoso

Es un antílope cuyas mejillas
son un jardín de rosas, defendido
del alacrán del aladar
por el granizo de sus dientes.
Cuando bebe en la copa se parece
a una luna bebiendo las estrellas.



AS-SANTARINÍ, Ibn Sara. "Joven hermoso". In:_____. Poemas. Trad. por Teresa Garulo. Madrid: Hiperión, 1983.


Jovem formoso

É um antílope, cujas faces
são um jardim de rosas, protegido
do escorpião da madeixa
pelo granizo de seus dentes.
Quando bebe do cálice parece
uma lua bebendo as estrelas.

11.1.14

Waly Salomão interpreta Gregório de Matos em trecho do filme de Ana Carolina




Mais uma vez, o cantor e compositor Arthur Nogueira, meu parceiro em várias composições, deu-me uma dica maravilhosa. Desta vez, é um trecho do filme Gregório de Matos, dirigido por Ana Carolina, em que o personagem principal, interpretado por Waly Salomão, define o amor. Vejam:


10.1.14

Paul Celan: "Fadensonnen" / "Sóis desfiados" : trad. João Barrento e Y.K. Centeno





Sóis desfiados
sobre o deserto cinza-negro.
Um pensamento alto-
como-árvore
capta o tom da luz: ainda
há canções para cantar do outro lado
dos homens.




CELAN, Paul. "Sopro, viragem". In_____. Sete rosas mais tarde. Antologia poética. Edição bilingue. Seleção, tradução e introdução de João Barrento e Y.K. Centeno. Lisboa: Cotovia, 1996.

8.1.14

Salgado Maranhão: "Templo"





Templo

Eu persigo a labareda
insurgente
                   que entretece
os dias sem rascunho.

Eu que me junto
                            aos retalhos  
e encontrado sigo
a perder-me; eu que antevi
a cara do mito
                         e cerzi o cristal
dos sonhadores.

Vem lava incendida
que poliniza as mulheres;
vem chuva secreta!

Meu templo é o das florações
imaginárias: o design orgástico
nas palavras
                     e o preço escrito nas vísceras.  



MARANHÃO, Salgado. O mapa da tribo. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.


6.1.14

Antero de Quental: "Evolução"





Evolução

Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,
Tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pascigo...

Hoje sou homem – e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, na imensidade...

Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.



QUENTAL, Antero de. Sonetos. Edição organizada por Antonio Sérgio. Lisboa: Sá da Costa, 1963.

4.1.14

Arnaldo Antunes: "Contra"





Eu apresento a página branca.

                                  Contra:

Burocratas travestidos de poetas
Sem-graças travestidos de sérios
Anões travestidos de crianças
Complacentes travestidos de justos
Jingles travestidos de rock
Estórias travestidas de cinema
Chatos travestidos de coitados
Passivos travestidos de pacatos
Medo travestido de senso
Censores travestidos de sensores
Palavras travestidas de sentido
Palavras caladas travestidas de silêncio
Obscuros travestidos de complexos
Bois travestidos de touros
Fraquezas travestidas de virtudes
Bagaços travestidos de polpa
Bagos travestidos de cérebros
Celas travestidas de lares
Paisanas travestidos de drogados
Lobos travestidos de cordeiros
Pedantes travestidos de cultos
Egos travestidos de eros
Lerdos travestidos de zen
Burrice travestida de citações
água travestida de chuva
aquário travestido de tevê
água travestida de vinho
água solta apagando o afago do fogo
água mole sem pedra dura
água parada onde estagnam os impulsos
água que turva as lentes e enferruja as lâminas
água morna do bom gosto, do bom senso e das boas intenções
insípida, amorfa, inodora, incolor
água que o comerciante esperto coloca na garrafa para diluir o
                                                                                     whisky
água onde não há seca
água onde não há sede
água em abundância
água em excesso
água em palavras.

Eu apresento a página branca.

A árvore sem sementes.

O vidro sem nada na frente.

                              Contra a água.




ANTUNES, Arnaldo. Tudos. São Paulo: Iluminuras, 2012.

2.1.14

Wisława Szymborska: "Retornos": trad. Regina Przybycien




Retornos

Voltou. Não disse nada.
Mas estava claro que teve algum desgosto.
Deitou-se vestido.
Cobriu a cabeça com o cobertor.
Encolheu as pernas.
Tem uns quarenta anos, mas não agora.
Existe – mas só como na barriga da mãe
na escuridão protetora, debaixo de sete peles.
Amanhã fará uma palestra sobre a homeostase
na cosmonáutica metagaláctica.
Por ora dorme, todo enroscado.



SZYMBORSKA, Wisława. Poemas. Tradução de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.