31.10.10

A questão do aborto 2

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 30 de outubro:


A questão do aborto 2

NA SEMANA passada, João Pereira Coutinho escreveu em sua coluna ("A questão do aborto, revisitada", Ilustrada, 19/10) um artigo em que apresentava uma veemente objeção à tese que eu havia antes defendido de que o aborto deve ser descriminalizado.

Lembro sucintamente que, tomando por base os escritos do filósofo francês Francis Kaplan, eu havia chamado a atenção para a distinção entre "estar vivo" e "ser um ser vivo". Um olho, na medida em que faculta a um ser humano enxergar, está vivo, mas não é um ser vivo pois não tem todas as funções necessárias para estar vivo. Ele precisa obter essas funções do ser vivo que é o ser humano. Assim ocorre com o embrião, que obtém do ser vivo que é a mãe todas as funções necessárias para estar vivo e para se desenvolver.

O mais importante, porém, é constatar que hoje se sabe que, pelo menos até o terceiro mês da concepção, o embrião não tem atividade cerebral. Dado que um ser humano sem atividade cerebral é, como lembra Kaplan, considerado clinicamente morto, sustento que não tem o menor sentido comparar o aborto -sobretudo se efetuado até o terceiro mês da concepção- com o assassinato de uma criança; e que é um absurdo a tese de que a vida da mãe não vale mais que a do embrião. Por isso, defendo que, pelo menos até o terceiro mês da concepção, a descriminalização do aborto deve ser incondicional.

Coutinho objeta que eu propositadamente excluo da minha argumentação "um pormenor fundamental: o que existe de "potencialidade" no embrião humano". Segundo ele, citando Stephen Schwarz, o aborto "significa a morte de um "ser vivo" em potência; significa, em linguagem prosaica, o roubo de um futuro pela autonomia do presente". Ora, para Coutinho, "uma sociedade será tão mais civilizada quanto maior for a proteção jurídica concedida a esse "ser vivo em potência'". E arremata: "Porque, como diria Henry Miller, escritor americano que está longe de ser um beato, "'não conheço maior crime do que matar o que luta para nascer'".

Coutinho escreve bem e reconheço ser bonito esse arremate; no entanto, creio que exatamente o seu uso no presente contexto trai a falácia em que se baseia essa defesa da criminalização do aborto.

Dizer que o embrião "luta para nascer" é dizer que ele deseja intensamente nascer. Desse modo, ele é transformado numa pessoa.

A possibilidade puramente objetiva de que o feto nasça passa a ser concebida como o desejo do embrião, assim como a possibilidade de vir a ser um médico é o desejo do estudante de medicina. E, assim como impedir que o estudante se forme e exerça a medicina constituiria a maldade de frustrá-lo de seu maior sonho, assim também o aborto constituiria a maldade de frustrar o sonho de nascer -o direito de nascer- do pobre embrião.

Mas o fato é que essa novela se desfaz quando nos lembramos de que, pelo menos nos três primeiros meses, quando ainda não tem sequer atividade cerebral, o embrião constitui uma unidade apenas para os outros, mas não para si.

Na verdade, ele nem sequer possui um "si". Sem sentir, pensar ou ter um "si", o embrião não chega a ser uma pessoa, de modo que não poderia ter projeto, desejo ou ambição: sem falar de um futuro que lhe pudesse ser "roubado". Ora, que sentido teria falar de "direitos" ou de "proteção jurídica" de algo que nem sequer pensa, sente ou tem um "si"?

Não é sequer a partir de si próprio que o embrião se desenvolve. “O que chamamos concepção”, diz Kaplan, “corresponde praticamente a um enxerto de cromossomos do pai num óvulo da mãe”. Depois disso, até o terceiro mês da concepção, as informações que formarão o feto provêm da mãe. Ou seja, a “potencialidade” dele é como a potencialidade de uma folha em branco conter um poema. E quem compararia rasgar uma folha em branco com rasgar a folha em que já está escrito um belo poema?

As possibilidades que o embrião encarna, portanto, não são possibilidades que ele mesmo contemple. Elas são, em primeiro lugar, possibilidades objetivas: no caso em questão, a possibilidade trivial de que o mundo adquira mais um habitante. Não vejo sentido, neste mundo superpopulado em que vivemos, em fazer força para que o mundo não deixe de ter mais um habitante.

Em segundo lugar, porém, as possibilidades que o embrião encarna afetam diretamente algumas pessoas: em particular seus pais e, em primeiríssimo lugar, a mãe que o carrega no útero. Em última análise é, portanto, a ela que deve caber o direito de escolher entre abortar ou não. Não se pode, em nome de nenhuma ideologia -religiosa ou laica- roubar-lhe esse direito.

A mim parece que uma sociedade será tanto mais civilizada quanto maior for a proteção jurídica concedida a tais sujeitos reais -em oposição a sujeitos fictícios- de direitos.

29.10.10

Adriano Nunes: "Olvido"

Olvido

Esquece Helena
Esquece o mundo
Esquece a fundo
Esquece a pena

Esquece o verso
Esquece o susto
Esquece, é justo
Esquece emerso

Esquece mesmo
Esquece o rumo
Esquece o sumo
Esquece a esmo

Esquece a Grécia
Esquece a luta
Esquece-a! Custa?
Esquece a astúcia.

Entrevista à Sibila

Está no ar a entrevista "A poesia não nasce das regras", que dei aos poetas Luis Dolhnikoff e Régis Bonvicino, da revista Sibila. O endereço é: http://www.sibila.com.br/index.php/critica/1338-a-poesia-nao-nasce-das-regras.

27.10.10

Marcel Proust: de "A l'ombre des jeunes filles en fleurs"




J’avais autrefois entrevu aux Champs-Élysées et je m’étais rendu mieux compte depuis qu’en étant amoureux d’une femme nous projetons simplement en elle un état de notre âme ; que par conséquent l’important n’est pas la valeur de la femme mais la profondeur de l’état ; et que les émotions qu’une jeune fille médiocre nous donne peuvent nous permettre de faire monter à notre conscience des parties plus intimes de nous-même, plus personnelles, plus lointaines, plus essentielles, que ne ferait le plaisir que nous donne la conversation d’un homme supérieur ou même la contemplation admirative de ses œuvres.


Eu havia outrora entrevisto nos Champs Élysées, e depois compreendi melhor, que, quando estamos enamorados de uma mulher, projetamos simplesmente nela um estado de nossa alma; que por conseguinte o importante não é o valor da mulher, mas a profundidade do estado; e que as emoções que uma moça medíocre nos dá podem permitir-nos fazer elevarem-se à consciência algumas partes mais íntimas de nós mesmos, mais pessoais, mais longínquas, mais essenciais do que o prazer de conversar com um homem superior ou mesmo o de contemplar com admiração suas obras seria capaz de produzir.



PROUST, Marcel. "A l'ombre des jeunes filles en fleurs". A la recherche du temps perdu. Paris: Gallimard, 1919.

24.10.10

Manuel Bandeira: "Tema e voltas"




Tema e voltas

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se nos céus há o lento
Deslizar da noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se lá fora o vento
É um canto na noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se agora, ao relento,
Cheira a flor da noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se o meu pensamento
É livre na noite?




BANDEIRA, Manuel. "Belo belo". Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967.

23.10.10

Maria Rita Kehl: "Repulsa ao sexo"





O seguinte -- excelente -- artigo de Maria Rita Kehl foi publicado no jornal O Estado de São Paulo no dia 18 de setembro, isto é, duas semanas antes do episódio lamentável de sua demissão, em consequência da publicação de um artigo seu ("Dois pesos") que destoava da linha política declaradamente adotada pelo jornal, de apoio, nas atuais eleições, ao candidato José Serra.



Repulsa ao sexo


Entre os três candidatos à presidência mais bem colocados nas pesquisas, não sabemos a verdadeira posição de Dilma e de Serra. Declaram-se contrários para não mexer num vespeiro que pode lhes custar votos. Marina, evangélica, talvez diga a verdade. Sua posição é tão conservadora nesse aspecto quanto em relação às pesquisas com transgênicos ou células–tronco.

Mas o debate sobre a descriminalização do aborto não pode ser pautado pela corrida eleitoral. Algumas considerações desinteressadas são necessárias, ainda que dolorosas. A começar pelo óbvio: não se trata de ser a favor do aborto. Ninguém é. O aborto é sempre a última saída para uma gravidez indesejada. Não é política de controle de natalidade. Não é curtição de adolescentes irresponsáveis, embora algumas vezes possa resultar disso. É uma escolha dramática para a mulher que engravida e se vê sem condições, psíquicas ou materiais, de assumir a maternidade. Se nenhuma mulher passa impune por uma decisão dessas, a culpa e a dor que ela sente com certeza são agravadas pela criminalização do procedimento. O tom acusador dos que se opõem à legalização impede que a sociedade brasileira crie alternativas éticas para que os casais possam ponderar melhor antes, e conviver depois, da decisão de interromper uma gestação indesejada ou impossível de ser levada a termo.

Além da perda à qual mulher nenhuma é indiferente, além do luto inevitável, as jovens grávidas que pensam em abortar são levadas a arcar com a pesada acusação de assassinato. O drama da gravidez indesejada é agravado pela ilegalidade, a maldade dos moralistas e a incompreensão geral. Ora, as razões que as levam a cogitar, ou praticar, um aborto, raramente são levianas. São situações de abandono por parte de um namorado, marido ou amante, que às vezes desaparecem sem nem saber que a moça engravidou. Situações de pobreza e falta de perspectivas para constituir uma família ou aumentar ainda mais a prole já numerosa. O debate envolve políticas de saúde pública para as classes pobres. Da classe média para cima, as moças pagam caro para abortar em clínicas particulares, sem que seu drama seja discutido pelo padre e o juiz nas páginas dos jornais.

O ponto, então, não é ser a favor do aborto. É ser contra sua criminalização. Por pressões da CCNBB, o Ministro Paulo Vannucci precisou excluir o direito ao aborto do recente Plano Nacional de Direitos Humanos. Mas mesmo entre católicos não há pleno consenso. O corajoso grupo das “Católicas pelo direito de decidir” reflete e discute a sério as questões éticas que o aborto envolve.

O argumento da Igreja é a defesa intransigente da vida humana. Pois bem: ninguém nega que o feto, desde a concepção, seja uma forma de vida. Mas a partir de quantos meses passa a ser considerado uma vida humana? Se não existe um critério científico decisivo, sugiro que examinemos as práticas correntes nas sociedades modernas. Afinal, o conceito de humano mudou muitas vezes ao longo da história. Data de 1537 a bula papal que declarava que os índios do Novo Continente eram humanos, não bestas; o debate, que versava sobre o direito a escravizar-se índios e negros, estendeu-se até o século XVII.

A modernidade ampliou enormemente os direitos da vida humana, ao declarar que todos devem ter as mesmas chances e os mesmos direitos de pertencer à comunidade desigual, mas universal, dos homens. No entanto, as práticas que confirmam o direito a ser reconhecido como humano nunca incluíram o feto. Sua humanidade não tem sido contemplada por nenhum dos rituais simbólicos que identificam a vida biológica à espécie. Vejamos: os fetos perdidos por abortos espontâneos não são batizados. A Igreja não exige isto. Também não são enterrados. Sua curta existência não é imortalizada numa sepultura – modo como quase todas as culturas humanas atestam a passagem de seus semelhantes pelo reino desse mundo. Os fetos não são incluídos em nenhum dos rituais, religiosos ou leigos, que registram a existência de mais uma vida humana entre os vivos.

A ambigüidade da Igreja que se diz defensora da vida se revela na condenação ao uso da camisinha mesmo diante do risco de contágio pelo HIV, que ainda mata milhões de pessoas no mundo. A África, último continente de maioria católica, paupérrimo (et pour cause...), tem 60% de sua população infectada pelo HIV. O que diz o Papa? Que não façam sexo. A favor da vida e contra o sexo – pena de morte para os pecadores contaminados.

Ou talvez esta não seja uma condenação ao sexo: só à recente liberdade sexual das mulheres. Enquanto a dupla moral favoreceu a libertinagem dos bons cavalheiros cristãos, tudo bem. Mas a liberdade sexual das mulheres, pior, das mães – este é o ponto! – é inadmissível. Em mais de um debate público escutei o argumento de conservadores linha-dura, de que a mulher que faz sexo sem planejar filhos tem que agüentar as conseqüências. Eis a face cruel da criminalização do aborto: trata-se de fazer, do filho, o castigo da mãe pecadora. Cai a máscara que escondia a repulsa ao sexo: não se está brigando em defesa da vida, ou da criança (que, em caso de fetos com malformações graves, não chegarão viver poucas semanas). A obrigação de levar a termo a gravidez indesejada não é mais que um modo de castigar a mulher que desnaturalizou o sexo, ao separar seu prazer sexual da missão de procriar.

21.10.10

Daniel Sottomaior: "Ateísmo e cidadania"




O seguinte artigo, de Daniel Sottomaior, presidente da Atea (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos), cujo endereço eletrônico é http://www.atea.org.br/, foi publicado na Folha de São Paulo na quarta-feira, 19 de outubro.



20 de outubro de 2010

Ateísmo e cidadania
DANIEL SOTTOMAIOR


No Brasil atual, é inimaginável um senador da República dizer que "tem pena" de judeus.
Ou um apresentador de TV afirmar repetidas vezes que certo criminoso "só pode ser negro". Ou um candidato à Presidência afirmar que o judaísmo tem criado problemas no Brasil e no mundo e que é bom que o próximo mandatário supremo não seja judeu.

Ou um vilão de novela ser gay e atribuir sua maldade à própria homossexualidade.

No entanto, esse é o país em que vivem cerca de 4 milhões de ateus -número aproximado, já que o IBGE nos nega essa informação, a despeito do art. 5º da Constituição: "Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica".

Todos esses casos são reais, referindo-se na verdade a ateus, mas ninguém foi destituído, despedido ou processado pelo Ministério Público. Por que será?

A Folha dá enorme passo na direção certa ao abrir espaço a esta resposta ao artigo "Dilma e a fé Cristã", de Frei Betto ("Tendências/Debates", 10/10). Nele, o dominicano afirmou: "Nossos torturadores, sim, praticavam o ateísmo militante ao profanar, com violência, os templos vivos de Deus: as vítimas levadas ao pau de arara, ao choque elétrico, ao afogamento e à morte".

Não há como salvar essa lógica.

Trata-se de expressão clara de preconceito. Se a frase é inaceitável referindo-se a judaísmo ou negritude, então o mesmo deve valer para o ateísmo. E o contexto não poderia ser pior: o mote do artigo é salvar a candidata de "acusações" de ateísmo, ao invés de mostrar que ateísmo não é matéria de acusação em sociedade não discriminadora.

Identificar grupos de pessoas a deficiência física, estética, mental, moral ou até teológica sempre foi a racionalização do discriminador.

A maldade dos ateus é mais uma dessas lendas preconceituosas, reafirmada "ad nauseam" pela sacrossanta Bíblia Sagrada e por quase todos os seus cristianíssimos seguidores, apesar de desautorizada por todos os dados disponíveis.

A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea) vem congregando descrentes em todos os quadrantes do país, esclarecendo a sociedade, defendendo os ateus da posição inferior que nos querem impingir, lutando por um Estado verdadeiramente laico e levando aos tribunais as pessoas e instituições que insistem no contrário.

Isso, sim, é ateísmo militante.

Ironicamente, bulas papais como "Ad extirpanda" e "Dum diversas" deixam claro que o cristianismo militante inclui tortura e escravização de descrentes. Não consta que tenham sido revogadas.

O grande manual de tortura de todos os tempos, "Malleus Maleficarum", foi escrito também por dominicanos, e serviu de guia, durante séculos, para a violência católica contra infiéis.
No caso a que Frei Betto se refere, os papéis também estão invertidos: combater o ateísmo era uma das justificativas para a ditadura, sintomaticamente inaugurada com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade.

É o teísmo militante, naquela época como hoje, alimentando-se do preconceito escancarado contra ateus, sequestrando e engravidando a política, em nome dos bons tempos, para nela conceber seus frutos. Vejam só no que deu.

20.10.10

Jacques Prévert: "Tant de forêts..." / "Tantas florestas": tradução de Silviano Santiago




Tantas florestas...

Tantas florestas arrancadas da terra
e massacradas
arrasadas
rotativadas

Tantas florestas sacrificadas para virar pasta
                                        de papel
milhares de jornais chamando anualmente a atenção dos leitores para os perigos do desmatamento dos bosques e das florestas.


Tant de forêts...

Tant de forêts arrachées à la terre
Et massacrées
Achevées
Rotativées

Tant de forêts sacrifiées pour la pâte à papier
des milliards de journaux attirant annuellement l´attention des lecteurs sur les dangers du déboisement des bois et des forêts


PRÉVERT, Jacques. Poemas. Introdução, seleção e tradução dos poemas por SANTIAGO, Silviano. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

17.10.10

A questão do aborto





O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 16 de outubro.



A questão do aborto

________________________________________
Quem se opõe à descriminalização do aborto defende não a vida, mas uma crença religiosa
________________________________________


Se não me engano, algum tempo atrás Lula previu que, nas eleições deste ano, todos os candidatos à Presidência seriam de esquerda. De fato, os três mais votados candidatos do primeiro turno, logo, os dois do segundo, são considerados de esquerda.

Serão mesmo? Pensaria o contrário quem, sem nada saber dos candidatos, visse as fotos diárias que a imprensa publica de cada um deles a assistir à missa; ou suas confraternizações com pastores e políticos evangélicos; ou lesse suas declarações de fé; ou as promessas de obediência que fazem a líderes religiosos; ou suas renegações da proposta da descriminalização do aborto...

Dois dias atrás, afirmando que uma eleição é o pior momento para debater qualquer questão que seja, Contardo Calligaris postergou uma discussão sobre o aborto. Acho que ele estava certo. Contudo, tendo lido inúmeros ataques à tese de que o aborto deve ser descriminalizado, mas nenhum argumento a favor dela, resolvi lembrar alguns.

E, para mim, os argumentos mais decisivos são os do filósofo francês Francis Kaplan no seu livro "O Embrião É um Ser Vivo?", por ele resumidos em entrevista que a Folha publicou em abril de 2008.

Segundo Kaplan, deve-se distinguir entre "estar vivo" e "ser um ser vivo". Um ser vivo não é apenas um ser que tem funções (pois várias partes do ser vivo têm funções), mas um ser que tem todas as funções necessárias para estar vivo. Assim é um ser humano, por exemplo. Já o olho do ser humano, na medida em que lhe faculta enxergar, está vivo, mas não é um ser vivo. O olho está vivo somente na medida em que faz parte do ser vivo que é o ser humano.

Assim também o embrião está vivo somente enquanto parte de outro ser vivo, que é a sua mãe. Por si mesmo, "as funções vitais de que ele precisa para estar vivo são as da mãe. É graças à função digestiva da mãe que ele recebe o alimento, que pode usar somente por lhe chegar previamente digerido pela mãe; é graças à função glicogênica do fígado da mãe que ele recebe a glicose; é graças à função respiratória da mãe que os glóbulos vermelhos de seu sangue recebem o oxigênio; é graças à função excretória da mãe que ele expulsa materiais prejudiciais, dejetos que, de outro modo, o envenenariam".

E mais: "Não é o embrião que se desenvolve: é a mãe que, por meio da produção da serotonina periférica no sangue, determina, durante mais da metade da gestação, o desenvolvimento neurobiológico e a viabilidade futura do organismo que carrega".

Kaplan explica, ademais, que, pelo menos até o terceiro mês da concepção, o feto não tem atividade cerebral. Acontece que, como ele observa, "um homem sem atividade cerebral é considerado clinicamente morto". Ora, “o prazo de três meses é o prazo dentro do qual a maioria das mulheres que querem abortar aborta, mesmo quando podem fazê-lo legalmente mais tarde”. Vê-se assim que não tem o menor sentido comparar o aborto com o assassinato de uma criança, como alguns religiosos costumam fazer. E que pensar então da tese de que a vida da mãe não vale mais que a do feto?

Diga-se a verdade: quem se opõe à descriminalização do aborto defende não a vida, como alega, mas sim uma crença religiosa segundo a qual nem o prazer sexual pode ser um fim em si mesmo nem o ser humano é dono de si próprio ou do seu corpo.

Ora, cada qual tem o direito à crença religiosa que bem entender, mas o Estado, que deve ser laico, não pode adotar nenhuma delas em particular.

Nenhuma mulher recorre ao aborto por prazer, mas em consequência de sofrimento, e para evitar ainda maior sofrimento para si, para sua família e para a criança que nasceria.

É uma grande crueldade que o Estado penalize essas mulheres e, principalmente, as mulheres pobres que, sem recursos, são obrigadas a praticar o aborto nas piores condições imagináveis.

16.10.10

Barak Obama: Discurso (com legendas)

Agradeço ao Poeta Alberto Pucheu por me ter chamado atenção para o seguinte vídeo, que mostra um excelente discurso do então candidato a Presidente dos Estados Unidos, Barak Obama. Não dá para não ficar com pena da indigência mental dos NOSSOS atuais candidatos a presidente, quando falam dos mesmos temas!


13.10.10

Thomas Hardy: "Afterwards" / "Depois": tradução de Ângela Melim

Afterwards


When the Present has latched its postern
                    behind my tremulous stay,
And the May month flaps its glad green leaves
                    like wings,
Delicate-filmed as new-spun silk, will the
                    neighbours say,
“He was a man who used to notice such
                    things”?

Quando o presente tiver trancado a sua porta
                    após a minha trêmula estadia,
E o mês de maio abanar suas alegres folhas
                    verdes como asas,
Névoa delicada feito seda acabada de fiar, irão
                    os vizinhos dizer:
“Ele era um homem que costumava notar tais
                    coisas”?

If it be in the dusk when, like an eyelid’s
                    soundless blink,
The dewfall-hawk comes crossing the shades
                    to alight
Upon the wind-warped upland thorn, a gazer
                    may think,
“To him this must have been a familiar sight.”

Se for na penumbra quando, com um piscar
                    sem som de uma pálpebra
O falcão da queda do orvalho vier cruzando
                    as sombras para iluminar
O espinheiro do planalto torcido de vento, um
                    observador pode pensar:
“Para ele essa deve ter sido uma visão
                    familiar”.

If I pass during some nocturnal blackness,
                    mothy and warm,
When the hedgehog travels furtively over the
                    lawn,
One may say, “He strove that such innocent
                    creatures should come to no
                    harm,
But he could do little for them; and now he
                    is gone.”

Se eu passar durante algum negrume noturno,
                    cheio de mariposas e morno,
quando o ouriço-cacheiro viaja furtivamente
                    pelo gramado,
Podem dizer: “Ele lutou para que a essas
                    inocentes criaturas não
                    sobreviesse nenhum mal,
Mas pouco pôde fazer por elas, e agora foi-se”.

If, when hearing that I have been stilled at
                    last, they stand at the door,
Watching the full-starred heavens that winter
                    sees,
Will this thought rise on those who will meet
                    my face no more,
“He was one who had an eye for such
                    mysteries”?

Se, ao saber que aquietei-me afinal, eles
                    estiverem de pé à porta,
Acompanhando os céus inteirametne estrelados
                    que o inverno vê,
Irá esse pensamento despertar naqueles que
                    não mais encontrarão meu rosto:
“Ele foi alguém que tinha olhos para tais
                    mistérios.”?

And will any say when my bell of quittance is
                    heard in the gloom,
And a crossing breeze cuts a pause in its
                    outrollings,
Till they rise again, as they were a new
                    bell's boom,
"He hears it not now, but used to notice such
                    things?”

E irá alguém dizer quando o sino da minha
                    despedida for ouvido ao
                    escurecer,
E a brisa que passa cortar uma pausa em seus
                    desenrolares
Enquanto não tornam a levantar-se como se
                    fossem um novo repicar de sino:
“Ele já não ouve mas costumava notar tais
                    coisas”?



HARDY, Thomas. "Afterwards". In: AUDEN, W.H. Fazer, saber, julgar. Tradução de Ângela Melim. Ilha de Santa Catarina: Noa Noa, 1981.

10.10.10

Max Martins: "Ao luar"




Ao luar

Um ramo de loucura




MARTINS, Max. "Colmando a lacuna". Poemas reunidos (1992-2001). Belém: EDUFPA, 2001.

9.10.10

Curso "Como ler um poema"


A leitura de um poema, mesmo – e sobretudo – quando efetuada em voz baixa ou interior, não se compara com outras experiências de leitura. Não se lê um poema como se lê um artigo de jornal, um ensaio ou um romance, por exemplo. A leitura de um poema deve ser progressiva e regressiva, levando em conta todos os elementos semânticos e sintáticos, formais e materiais, descritivos e alusivos de que ele é composto. Quando não é lido adequadamente, o poema não é fruído como obra de arte, isto é, não é fruído como deve sê-lo. O curso “Como ler um poema” pretende, através de abordagens exemplares de alguns dos maiores poemas da literatura universal e brasileira, indicar como se deve ler um poema para fruí-lo enquanto obra de arte. Será dada maior ênfase à leitura de poemas modernos brasileiros e portugueses.


Temas:

Que é a poesia? A poesia e as outras artes. A poesia e a filosofia. A poesia e o juízo de valor. Poesia clássica e poesia romântica. Os recursos poéticos. Métrica. As formas fixas. Poesia moderna e modernista. O verso livre. O legado da tradição. Poesia de vanguarda. O resguardo. A retaguarda. Poesia contemporânea. A letra de canção.




De 19 a 22 de outubro,
de terça a sexta,
das 20h às 22h


INSCRIÇÕES

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de segunda a sexta das 9h às 22h
sábados das 10h às 17h

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Carlos Drummond de Andrade: "O mundo é grande"





O mundo é grande


O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.



 
ANDRADE, Carlos Drummond de. "Amar se aprende amando". Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

7.10.10

Armindo Rodrigues: XC de "Beleza prometida"




XC

Pouco é um homem e, no entanto, nele
cabe tudo o que existe e fica ainda
espaço bastante para negá-lo.



RODRIGUES, Armindo. "Beleza prometida". Obra poética. Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural, 1972.

4.10.10

Marcelo Diniz: "Tudo se faz de forma assim tão vária"




Tudo se faz de forma assim tão vária


Tudo se faz de forma assim tão vária
a nunca ser o mesmo que se escreve;
escreve-se porque falar é breve
e, eterna, a lavra quer-se abecedária;

tudo se faz, portanto, involuntária
e cautelosamente, como deve
quem deseja dotar o que é mais leve
de concisão sutil tão necessária;

por que se passe a limpo o repetido
para gravar o travo do que é dito
fixo na cifra e nítido no lido;

faz-se todo, finito após finito
a fim de, a cada surto do sortido,
somar-se ao infinito um outro escrito.

3.10.10

A vida passada a limpo



O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 2 de outubro.


A vida passada a limpo


NA VÉSPERA das eleições, é natural que praticamente não se fale senão de política: e às vezes com uma histeria tanto maior quanto menos importante é o que se diz. Para variar, voltarei a escrever sobre um dos meus assuntos favoritos e inesgotáveis: "Que é a poesia?"
Outro dia, para tentar responder a essa pergunta, vali-me de um poema de Manuel Bandeira, "O Rio". Hoje aproveito o extraordinário título de um livro de Carlos Drummond de Andrade: "A Vida Passada a Limpo".

Passar a limpo um texto é retirar-lhe tudo o que não lhe pertence por direito, modificar o que deve ser modificado, adicionar o que falta, reduzi-lo ao que deve ser e apenas ao que deve ser. No caso de um poema, faz-se isso até o impossível, isto é, até que ele resplandeça. O que resplandece é o que vale por si: o que merece existir.

Para tentar chegar a esse ponto, o poeta necessita pôr em jogo, até aonde não possam mais ir, todos os recursos de que dispõe: todo seu intelecto, sua sensibilidade, sua intuição, sua razão, sua sensualidade, sua experiência, seu vocabulário, seu conhecimento, seu senso de humor etc. E entre os "cetera" encontra-se a capacidade de, a cada momento, intuir o que interessa e o que não interessa naquilo que o acaso e o inconsciente ofereçam.

Em princípio, tudo num poema é arbitrário. O poeta sabe que a poesia é compatível com uma infinidade de formas e temas. Ele tem o direito de usar qualquer das formas tradicionais do verso, o direito de modificá-las e o direito de inventar novas formas para os seus poemas. Nenhuma opção lhe é vedada a priori; em compensação, nenhuma opção lhe confere garantia alguma de que sua obra venha a ter qualquer valor.

O poema se desenvolve a partir de alguma decisão ou de algum acaso inicial. Por exemplo, ocorre ao poeta, em primeiro lugar, uma frase que ouviu no metrô; a partir dela, esboça-se uma ideia: e ele começa a fazer um poema. Ou então ocorre-lhe uma ideia e ele tenta desdobrá-la e realizá-la. A cada passo, é preciso fazer escolhas. Em algum momento -seja no início, seja no meio do trabalho- impõe-se decidir a estrutura global do poema: se será longo ou curto; se será dividido em estrofes; se seus versos serão livres ou metrificados; se serão rimados ou brancos; se o poema como um todo terá um formato tradicional, como um soneto, ou uma forma "sui generis" etc. Às vezes, uma primeira decisão parece impor todas as demais, que vêm como que natural e impensadamente; às vezes, certos momentos se dão como crises que aguardam soluções.

Cada escolha que o poeta faz limita a liberdade vertiginosa de que ele dispunha antes de começar a escrever. As restrições devidas a formas autoimpostas são importantes, porque exatamente o esforço consciente e obsessivo para tentar resolver a tensão entre elas e o impulso expressivo é um dos fatores que mais propiciam a ocorrência de intervenções felizes do acaso e do inconsciente: o que, de certo modo, dissolve a dicotomia tradicional entre a inspiração, por um lado, e a arte ou o trabalho, por outro.

Assim, numa época em que "tempo é dinheiro", a poesia se compraz em esbanjar o tempo do poeta. Mas o poema em que a poesia esbanjou o tempo do poeta é aquele que também dissipará o tempo do leitor ideal, que se deleita ao flanar pelas linhas dos poemas que mereçam uma leitura ao mesmo tempo vagarosa e ligeira, reflexiva e intuitiva, auscultativa e conotativa, prospectiva e retrospectiva, linear e não linear, imanente e transcendente, imaginativa e precisa, intelectual e sensual, ingênua e informada. Ora, é por essa temporalidade concreta, que se põe no lugar da temporalidade abstrata do cotidiano, que se mede a grandeza de um poema.

Dizer que a poesia é a vida passada a limpo é dizer que a vida é o rascunho da poesia. Isso significa que o fim da vida é virar poesia. Por essa razão, longe de ser um meio (por exemplo, um meio de "expressão" ou de "comunicação") para o poeta, a poesia é o seu fim. Dado que o fim subordina os meios, e não vice-versa, o poeta é um servo -um servo voluntário e apaixonado, é verdade, mas um servo- da poesia. Nessa relação, não é ela que se inclina às conveniências dele, mas é ele que deve dobrar-se às exigências e aos caprichos -inclusive aos silêncios- dela.

1.10.10

Giuseppe Ungaretti: "Casa mia" / "Minha casa": trad. Sérgio Wax




Casa mia

Sorpresa
dopo tanto
d'un amore

Credevo di averlo sparpagliato
per il mondo



Minha casa

Depois de tanto tempo
surpresa
dum amor

Achava que o havia espalhado
pelo mundo



UNGARETTI, Giuseppe. A alegria / L'allegria. Edição bilingue. Tradução de Sérgio Wax. Belém: CEJUP, 1992.