29.4.09

Dado Amaral: "ai que vontade de largar tudo"

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ai que vontade de largar tudo
virar música
e sair por aí
de dentro dos radinhos de pilha
entrar pelos ouvidos das moças
vibrar nos ossos das pessoas

ai que vontade de deitar nu
numa nuvem numa boa
virar chuva
e cair por aí
molhar a copa das árvores
o capô dos automóveis
refrescar a cabeça das pessoas

me largar
lavar o ar
e pingar sobre a Lagoa.



De: AMARAL, Dado. Olho nu. Rio de Janeiro: Mundo das Idéias, 2008.

27.4.09

Cecília Meireles: "Motivo"

Atendendo à sugestão do Adriano Nunes:



Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.


De: MEIRELES, Cecília. "Viagem". Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967.

26.4.09

Oscar Wilde: de "The critic as artist"

Trecho do diálogo "The critic as artist":



Nenhum poeta canta porque tem que cantar. Pelo menos, nenhum grande poeta o faz. Um grande poeta canta porque resolve cantar. É assim agora e sempre foi. Às vezes somos levados a pensar que as vozes que se ouviam na alvorada da poesia eram mais simples, mais arejadas, mais naturais que as nossas e que o mundo que os poetas primevos contemplavam e pelo qual passeavam era dotado de uma espécie de virtude poética própria que podia quase sem alteração passar à canção. Hoje a neve está acumulada no Olimpo e suas encostas íngremes e escarpadas estão ermas e estéreis, mas imaginamos que outrora os alvos pés das musas roçavam o orvalho das anêmonas pela manhã e, à noite, chegava Apolo para cantar aos pastores do vale. Mas com isso estamos apenas atribuindo a outras eras o que desejamos, ou cremos desejar, para a nossa. Nosso senso histórico é deficiente. Todo século que produz poesia é, na medida em que o faz, um século artificial, e a obra que nos parece o produto mais natural e simples da sua época é sempre o resultado do esforço mais autoconsciente. Creia-me, Ernest, não há belas-artes sem autoconsciência, e a autoconsciência e o espírito crítico são uma coisa só.



De: WILDE, Oscar. "The critic as artist". The complete works of Oscar Wilde. London and Glasgow: Collins, 1966.

25.4.09

Rainer Maria Rilke: "Rose, oh reiner Widerspruch, Lust" / "Rosa, ó pura contradição, prazer": tradução de José Paulo Paes

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Rosa, ó pura contradição, prazer
de ser o sono de ninguém sob tantas
pálpebras.




Rose, oh reiner Widerspruch, Lust,
Niemandes Schlaf zu sein unter soviel
Lidern.



De: RILKE, Rainer Maria. "Poemas esparsos e póstumos (1906-1926)". In: Poemas. Seleção, tradução e introdução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras: 1993.

24.4.09

Paul Valéry: de "Ego"

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A vida tão simples, o pensamento tão complexo quanto possível, eis o meu gosto.



VALÉRY, Paul. "Ego". Cahiers. Paris: Gallimard, 1973, vol.1.

21.4.09

Jean-Michel Maulpoix "La mer se mêle avec la mer" / "O mar mistura-se ao mar": Traduzido por Mário Laranjeira

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O mar mistura-se ao mar
Mescla os seus laços, lagos, poças
Suas idéias de gaivotas e de espumas
Seus sonhos de algas e alcatrazes
Aos graves crisântemos azuis ao largo
Aos miosótis em tufos nos muros alvos das ilhas
Às equimoses do horizonte, aos faróis apagados
Aos sonhos do céu impenetrável.



La mer se mêle avec la mer
Mélange ses lacs et ses flaques
Ses idées de mouettes et d'écumes
Ses rêves d'algues et de cormorans
Aux lourds chrysanthèmes bleus du large
Aux myosotis en touffes sur les murs blancs des îles
Aux ecchymoses de l'horizon, aux phares éteints
Aux songes du ciel impénétrable



De: MAULPOIX, Jean-Michel. "La mer se mêle avec la mer". In: LARANJEIRA, Mário (seleção, tradução e introdução). Poetas de França hoje. São Paulo: Edusp / Fapesp, 1996.

19.4.09

Nietzsche e o papa

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 18 de abril:



Nietzsche e o papa

QUINTA-FEIRA da semana passada, por ocasião da Missa Crismal, o papa Bento 16 fa-°° lou da incompatibilidade entre o pensamento de Friedrich Nietzsche e o cristianismo. Segundo ele, o autor de "Assim Falou Zarathustra" desdenhou a humildade e a obediência como virtudes servis, pelas quais os homens teriam sido reprimidos. O papa acusou Nietzsche também de ter colocado no lugar dessas virtudes "a ufania e a liberdade absoluta do homem". Ora, "no sim da ordenação sacerdotal", disse o papa ante os cardeais, bispos e padres em geral de Roma, "fizemos a renúncia fundamental a querer ser autônomos, à "autorrealização'".

As declarações do papa suscitaram viva reação, principalmente na Itália: o que não é de surpreender, considerando-se que é em Roma que fica o Vaticano e, nele, a Basílica de São Pedro, onde teve lugar a Missa Crismal. Assim, o filósofo católico Massimo Cacciari desconfia que seja ultrapassada a leitura de Nietzsche feita pelo papa.

O filósofo católico Gianni Vattimo, por sua vez, afirma que o papa não percebeu que "Nietzsche é um cristão inconsciente". Ao contrário deles, o também católico Giovanni Reale, autor de monumentais obras de história da filosofia, pensa que Bento 16 tem razão.

Também concordo com o papa. Repugnam-me esforços contemporâneos para conciliar com o cristianismo concepções de mundo que lhe são inteiramente antagônicas, como o pensamento de Nietzsche ou o de Marx.

Tais iniciativas me lembram outra coisa. Até pouco tempo era comum a tentativa de converter ou reverter ao cristianismo, no leito da morte, pensadores conhecidamente ateus ou deístas. Que digo? Até pouco tempo? Dez anos atrás isso ocorreu com um dos nossos maiores poetas.

Mas, a título de ilustração, vou citar o trecho de um livro em que o escritor piauiense Higino Cunha (de quem me orgulho de ser bisneto) descreve a morte de Voltaire:

"Os achaques da velhice vieram prostrá-lo com todo o seu cortejo de misérias. Entra em jogo a faina trevosa da conversão in extremis. Um padre se encarrega de confessá-lo e de fazê-lo assinar uma profissão de fé católico-romana. Propala-se a balela e os livres-pensadores motejam do caso incrível. Mas o filósofo não morreu dessa vez; volta a si e ajuda os incrédulos a zombarem da suposta retratação com grande escândalo da gente religiosa. Poucos dias depois uma recaída perigosa; outro padre põe-se à espreita do momento fatídico para a realização do plano inquisitorial; quer, a todo transe, que o moribundo reconheça, ao menos, a divindade de Jesus Cristo, pela qual se interessa mais do que pelos outros dogmas. Aproveita uma ocasião de letargia e grita-lhe aos ouvidos: Credes na divindade de Jesus Cristo? Respondeu-lhe o interpelado agonizante: Em nome de Deus, senhor, não me faleis mais desse homem e deixai-me expirar em paz".

Pois bem, pior que a conversão fraudulenta de um filósofo é a conversão fraudulenta da sua filosofia a uma religião à qual ele sempre se opôs. Que pode resultar de semelhante empreendimento senão a diluição de todos os conceitos numa desprezível mixórdia?

É verdade que Nietzsche fazia pouco caso de se contradizer. Por isso mesmo, tenho para mim que, embora ele seja um grande pensador, Nietzsche é antes um artista do que um filósofo.

Assim, é possível achar trechos de seus escritos em que sua atitude ante o cristianismo não seja de pura rejeição. Já em 1938, o filósofo Karl Jaspers pinçou vários deles, ao falar sobre "Nietzsche e o cristianismo". E até teólogos, como Eugen Biser, têm feito o mesmo.

Entretanto não há como negar que Nietzsche escolheu o cristianismo como seu inimigo principal, nos pontos cardeais das obras mais importantes que escreveu. Ora, ele dizia que era mais importante escolher bem os inimigos do que os amigos. De fato, é naquilo a que uma filosofia se opõe que se percebe seu gume. Privá-la de seu inimigo equivale a embotá-la.

Em "O Anticristo", lê-se: "É necessário dizer QUEM consideramos nossa antítese -- os teólogos e todos os que têm sangue de teólogo nas veias -- toda a nossa filosofia...". Parece-me claro que, se Nietzsche soubesse dos teólogos que tentam cooptá-lo, com certeza os consideraria como seus mais infames inimigos.

Mais leal é um inimigo formal como o papa. Afinal, a guerra foi declarada por Nietzsche, que considerava o cristianismo “mais nocivo que qualquer vício”.

18.4.09

Guillaume Apollinaire: "Et toi mon coeur" \ "E tu meu coração"

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E tu meu coração por que bates

Feito um atalaia melancólico
observo a noite e a morte



Et toi mon coeur pourquoi bats-tu

Comme un guetteur mélancolique
j'observe la nuit et la mort


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14.4.09

Manuel Bandeira: "Poema tirado de uma notícia de jornal"

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Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.


BANDEIRA, Manuel. "Libertinagem". Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.

12.4.09

Domingos da Mota: "Soneto de passagem"

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Soneto de passagem


Das águas corredias da memória
emergem os liames da incerteza:
retêm lendas, mitos e a história
das crenças, das ideias e a beleza

das artes, dos ofícios, da cultura,
e de terras fecundas e até sáfaras
que foram e serão a sepultura
de quem partiu do fio das diásporas.

É veloz o decurso desta vida:
um dia após o outro, e de repente
já fomos, e o que sobra à despedida
oxalá fosse pasto de semente:

de novo sentiríamos o sol,
quem sabe se flor, se rouxinol.

10.4.09

Nelson Ascher: "Elegiazinha"

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Elegiazinha

[i. m. nikita (gata da Inês)]


Gatos não morrem de verdade:
eles apenas se reintegram
no ronronar da eternidade.

Gatos jamais morrem de fato:
suas almas saem de fininho
atrás de alguma alma de rato.

Gatos não morrem: sua fictícia
morte não passa de uma forma
mais refinada de preguiça.

Gatos não morrem: rumo a um nível
mais alto é que eles, galho a galho,
sobem numa árvore invisível.

Gatos não morrem: mais preciso
— se somem — é dizer que foram
rasgar sofás no paraíso

e dormirão lá, depois do ônus
de sete bem vividas vidas,
seus sete merecidos sonos.



De: ASCHER, Nelson. Parte alguma. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

7.4.09

Federico García Lorca: "Narciso"

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Narciso

Niño,
¡Que te vas a caer al río!

En lo hondo hay una rosa
y en la rosa hay otro río.

¡Mira aquel pájaro! ¡Mira
aquel pájaro amarillo!

Se me han caído los ojos
dentro del agua.

¡Dios mío!
¡Que se resbala! ¡Muchacho!

…Y en la rosa estoy yo mismo.

Cuando se perdió en el agua
comprendí. Pero no explico.


Narciso

Menino,
Vais cair no rio!

No fundo há uma rosa
e na rosa há outro rio.

Olha aquele pássaro! Olha
aquele pássaro amarelo!

Caíram-me os olhos
dentro d’água.

Deus meu!
Ele escorrega! Menino!

... E na rosa estou eu mesmo.

Quando se perdeu na água
compreendi. Mas não explico.



De: LORCA, Federico Garcia. Canciones. Madrid: Espasa-Calpe, 1986.

5.4.09

Os vídeos poéticos de Carlos Nader

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna na "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 4 de abril.


Os vídeos poéticos de Carlos Nader


POR OCASIÃO da mostra, ainda em cartaz, "Carlos Nader: Ensaios Audiovisuais", cuja curadoria é de Bernardo Vorobow, participei, quarta-feira, de um debate com Carlos Adriano, Caetano Veloso e o próprio Carlos Nader. Conheço e admiro Carlos Nader e o seu trabalho há muito tempo, e já tive a honra de aparecer em dois dos seus vídeos, bem como no filme "Pan-Cinema Permanente". Por isso, cheguei à Cinemateca com algumas ideias sobre o que dizer durante o bate-papo. Entretanto, antes da mesa, assistimos aos vídeos "Beijoqueiro: Portrait of a Serial Kisser", "Carlos Nader" e "Concepção".

No vídeo "Carlos Nader", do qual participo, digo algumas coisas sobre a questão da subjetividade, a respeito da qual ele me pedira que falasse. Exatamente por ter aparecido nesse vídeo, porém, eu não havia conseguido apreciá-lo serenamente na época em que ficou pronto, mais de dez anos atrás.

É que, no filme, minha fala é improvisada. Ora, minhas falas improvisadas são, para usar a expressão de Homero, "palavras aladas", não porque sejam excelsas, mas porque merecem rapidamente voar para o passado e serem esquecidas. Repletas de anacolutos, repetições e imprecisões, não passam de rascunhos do que um dia eu talvez escreva, ou de arremedos do que um dia já escrevi. Além disso, desconfio que eu também, como o poeta Henri Michaux, tornei-me escritor "para revelar uma pessoa de cuja existência ninguém suspeitaria ao olhar para mim". Mas volta e meia um amigo me pede -por razões que me são absolutamente ininteligíveis- que faça uma ponta num filme seu e, como nesse caso, acabo cedendo.

O fato é que, não tendo conseguido ver direito o "Carlos Nader" dez anos atrás, na época do seu lançamento, vi-o quarta-feira passada como se o estivesse a ver pela primeira vez. Depois de tanto tempo, já sou quase outra pessoa. Pela primeira vez, apreciei-o como merece ser apreciado: como obra de arte. E ele, como os outros dois que passaram na mesma noite, é belíssimo.

Resultado: fiquei tão emocionado que, na mesa, esqueci o que havia pretendido dizer e falei apenas sobre o que tinha acabado de sentir. E o que me ocorreu foi que essas obras, que se apresentam como documentários, devem ser vistas -lidas- como poemas. Eles não se restringem a documentar pessoas e fatos, mas, através do estabelecimento de um certo modo de olhar e de uma certa sintaxe espaço-temporal produzida pela montagem, revelam-nos, à maneira de poemas verbais, um novo mundo, a sair do já conhecido. Caetano, a quem tampouco havia escapado a natureza poética desses vídeos, explicou brilhantemente de que modos concretos a sintaxe espaço-temporal a que me refiro é análoga a recursos da poesia verbal como ritmos, rimas etc.

"Beijoqueiro: Portrait of a Serial Kisser" fala de um homem cuja patetice nunca me interessara muito. O vídeo, porém, não só mostra na figura patética desse homem uma complexidade maior e mais interessante do que imaginávamos, mas, através do páthos que nele descobre, solicita-nos a pensar mais profundamente sobre os aspectos cômicos e trágicos das relações entre a busca do reconhecimento, a fama e o anonimato no mundo em que vivemos.

Em "Concepção", repete-se de vez em quando, por escrito, um trocadilho com as palavras "estranho" e "entranho". Esse jogo verbal é visualmente traduzido por uma cena que consiste numa endoscopia do próprio Carlos Nader: e quanto mais nele nos entranhamos, mais nos distanciamos dele, que mais estranho nos parece. É claro que exibir o lado de dentro de alguma coisa é fazer dela algo da mesma ordem dos objetos que se encontram do lado de fora. Nesse sentido, a endoscopia transforma o interior em exterior. E estranhamos as entranhas assim exteriorizadas.

Por outro lado, entranhamos, por assim dizer, os estranhos, como o beijoqueiro, pois, ao mesmo tempo em que percebemos sua verdadeira estranheza, criamos alguma empatia com eles, quando nos são exibidos em todas as suas verdadeiras dimensões, inclusive profundidade ou interioridade.

O vídeo "Carlos Nader" me lembrou os versos de Fernando Pessoa que dizem: "Entre o sono e o sonho, / Entre mim e o que em mim / É o quem eu me suponho / Corre um rio sem fim". Logo no início, encarando a câmera, o diretor afirma que vai confessar um grande segredo. Quando começa a contá-lo, não se ouve o que diz. O segredo não pode ser dito em linguagem prosaica. O vídeo prossegue. O segredo está no mundo. O vídeo é a prova.

4.4.09

Constantinos Caváfis: "Μακρυά" / "Longe" (tradução de Ísis Borges da Fonseca)

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Longe

Quisera referir essa lembrança...
Mas já se apagou tanto... visto que nada se mantém --
pois longe, nos primeiros anos de minha adolescência, ela jaz.

Uma pele como feita de jasmim...
Aquela noite de agosto -- era agosto? -- aquela noite...
Mal me lembro agora dos olhos -- eram, creio, azuis...
Ah! sim, azuis: um azul de safira.



Μακρυά
Θάθελα αυτήν την μνήμη να την πω...
Μα έτσι εσβύσθη πια... σαν τίποτε δεν απομένει —
γιατί μακρυά, στα πρώτα εφηβικά μου χρόνια κείται.

Δέρμα σαν καμωμένο από ιασεμί...
Εκείνη του Aυγούστου — Aύγουστος ήταν; — η βραδυά...
Μόλις θυμούμαι πια τα μάτια• ήσαν, θαρρώ, μαβιά...
A ναι, μαβιά• ένα σαπφείρινο μαβί.



De: KAVÁFIS, Konstantinos. Poemas de K. Kaváfis. Tradução, estudo e notas de Ísis Borges da Fonseca. São Paulo: Odysseus, 2006.