29.4.08

Apresentação de "A montanha mágica", de Thomas Mann

Li A montanha mágica pela primeira vez quando adolescente. A imponência do volume sugeria, de fato, uma montanha a ser escalada; quanto à mágica, senti-a desde as primeiras páginas.

Na verdade, Thomas Mann extraiu o título desse romance do trecho de O nascimento da tragédia em que Nietzsche diz: “Agora a montanha mágica do Olimpo como que se nos abre e mostra as suas raízes. O grego conheceu e sentiu os pavores e horrores da existência: para poder não mais que viver, precisou conceber a resplandecente criatura onírica dos olímpicos.” Mas os tempos modernos são outros. Ironicamente, na montanha mágica de Thomas Mann, situada na Suíça, não se encontram seres sobre-humanos, mas humanos enfermos: não a morada dos deuses, mas um sanatório para tuberculosos, do qual o escritor alemão faz um microcosmo em que encena, de modo magistralmente depurado, tanto o enfrentamento quanto o entrelaçamento das diferentes idéias que moviam o espírito europeu nos anos imediatamente anteriores à eclosão da primeira guerra mundial.

Entretanto, A montanha mágica não consiste num tratado de filosofia ou de história das idéias, mas num romance. Graças à arte do autor, seus personagens ficam-nos na memória como seres de carne e osso. Alguns são inesquecíveis: a russa Mme. Chauchat, cujos “olhos quirguizes” lembram ao personagem central – o “jovem singelo, ainda que simpático”, Hans Castorp – certo colega do ginásio, e contribuem para lhe provocar uma verdadeira obsessão erótica; o holandês Mynheer Peeperkorn (baseado no escritor – Prêmio Nobel de Literatura – Gerhart Hauptmann), que, “robusto e delicado”, domina, pela sua presença monumental e pelos seus gestos teatrais, os ambientes em que se encontra, apesar (ou também por causa?) do caráter inconcluso de quase todas as suas afirmações; e sobretudo, pelo menos para mim, o humanista italiano Settembrini e o jesuíta Naphta (que tudo indica ter sido baseado no filósofo Georg Lukacs), que se digladiam intelectualmente em torno do espírito de Hans Castorp – e do leitor.

Settembrini é o que Thomas Mann chama, não sem uma pitada de desdém, de Zivilizationsliterat, “literato da civilização”, isto é, um intelectual, herdeiro espiritual do humanismo e da Ilustração, nos moldes tradicionais da Europa Ocidental. Sua linguagem é “plástica”, como ele mesmo define, e tende a resvalar para a retórica. Interessado na vida mundana, sua figura é, no entanto, um pouco démodé e ridícula, tanto que, logo que o vê, Castorp o toma por um tocador de realejo. Naphta deveria representar, ao contrário, a cultura genuinamente alemã e romântica, em oposição àquilo que inúmeros pensadores alemães, tais como Spengler, tomavam como o mito superficial da civilização universal; no entanto, com notável ironia e profundidade, Thomas Mann o caracteriza como judeu da Europa Central, jesuíta e apologista dos valores da Idade Média. Chocantemente feio, ele é, no entanto, ao contrário de Settembrini, impecavelmente elegante e refinado.

“A malícia, senhor”, diz Settembrini no seu primeiro encontro com Hans Castorp, “é o espírito da crítica, e a crítica representa a origem do progresso e do esclarecimento”. Ao tratar cada um desses dois personagens com irreverência, logo distância crítica, equivalente, Thomas Mann assume plenamente o direito de – nas palavras de Strindberg que ele gostava de citar – “jogar com pensamentos e experimentar com pontos de vista, mas sem se atar a coisa alguma, pois a liberdade é o ar vital do poeta”. A verdade é que A montanha mágica exemplifica perfeitamente a tese de Schlegel de que “os romances são os diálogos socráticos de nosso tempo. Nessa forma liberal a sabedoria de vida refugiou-se da sabedoria escolar”.

De todo modo, talvez a característica mais assombrosa das discussões entre Settembrini e Naphta, para quem os lê no princípio do século XXI, é a sua inteira atualidade. De um lado, o religioso para quem é mister “espalhar o terror para a redenção do mundo e para a conquista do objetivo da redenção, que é a relação filial com Deus, sem a intervenção do Estado e das classes”; de outro, o secularista para quem é imperativo salvar e expandir as conquistas do Renascimento e do Século das Luzes, que, segundo ele, são “personalidade, direitos do homem, liberdade”. Essas posições se confrontam e desenvolvem em diálogos memoráveis, e um calafrio nos percorre quando nos damos conta do caráter profético das palavras com que Thomas Mann – bem antes da ocorrência de Auschwitz ou do Arquipélago Gulag, ou dos aviões e homens-bomba do nosso tempo – faz Naphta defender, por exemplo, a tese de que “o segredo e a existência da nossa era não são a libertação e o desenvolvimento do eu. O que ela necessita, o que deseja, o que criará é – o terror”.

Mas A montanha mágica é atual também em outro sentido. No passado, não faltou quem qualificasse a estrutura dos seus romances de insuficientemente experimental, em comparação com as dos romances de James Joyce ou Robert Musil, por exemplo. Trata-se de um equívoco. Cada obra de arte é sui generis, e deve ser respeitada e julgada segundo os critérios que ela mesma impõe. Em particular, são inaceitáveis os diagnósticos e as receitas baseados em tendências literárias à la page. A arte de Thomas Mann não fica em nada a dever à de Joyce ou Musil. Além disso, não se poderia compreender o caráter experimental de uma obra partir de semelhantes comparações. Convém contemplar a probabilidade de que o autor leve a sério a máxima que repete diversas vezes, ao longo do romance: placet experiri, isto é, “convém experimentar”. Seria cegueira taxar de conservador um estilo que admite, por exemplo, amplas passagens ensaísticas; que relativiza perspectivisticamente todas as posições espirituais, inclusive as do narrador; que emprega técnicas de composição extraídas da arte musical, como o Leitmotiv; que utiliza magistralmente a citação e a alusão; etc.

De todo modo, devo dizer que A montanha mágica foi para mim um Bildungsroman, isto é, um romance de formação, não apenas no sentido convencional e tradicionalmente reconhecido de que narra o aprendizado intelectual e emocional do já citado Hans Castorp, mas também de um modo muito pessoal, pois contribuiu decisivamente para a minha própria formação intelectual e emocional. Data, com efeito, da época da minha primeira leitura desse livro a decisão de dedicar os meus estudos prioritariamente à filosofia.

É por isso que me foi irresistível o convite para escrever esta apresentação. Aceitei-o, portanto, e reli o livro. Muita paixão literária da juventude perece, quando submetida a um olhar maduro. No caso de A montanha mágica, porém, creio que a experiência e os estudos me tenham armado para captar ainda melhor as inúmeras sugestões, alusões e sutilezas que, tendo escapado ao adolescente sem lhe fazerem falta, aumentam o deleite do adulto: o fato é que, para mim, ela se provou uma dessas obras-primas que não apenas resistem ao tempo, mas com ele crescem.


Apresentação a: MANN, Thomas. A montanha mágica. Trad. de Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira2006.

25.4.08

Eugénio de Andrade: "Templo da Barra"

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Templo da Barra


O verde dos bambus mais altos é azul
ou então é o céu que pousa nos seus ramos.



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22.4.08

Wallace Stevens: "Of modern poetry" / "Da poesia moderna"




De: STEVENS, Wallace. In: The palm at the end of the mind. Selected poems and a play. Org. p. STEVENS, Holly. New York: Vintage Books, 1967, p.174.


20.4.08

As vanguardas e a tradição

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Folha de São Paulo, sábado, 20 de abril de 2008:


As vanguardas e a tradição


EM ENSAIO chamado "Escrever como Reescrever: a Poesia Concreta como Retaguarda", a crítica literária americana Marjorie Perloff defende a tese de que seria mais adequado considerar a poesia concreta brasileira como "retaguarda" do que como "vanguarda".

Evitemos mal-entendidos: para ela, "retaguarda" não significa o oposto de "vanguarda". Não se trata, por exemplo, de um movimento de conservação ou de restauração do passado. Tendo em vista a origem militar tanto de um termo quanto do outro, ela lembra que "a retaguarda do exército é a parte que protege e consolida o movimento das tropas em questão". Assim, "quando um movimento de vanguarda não é mais novidade, o papel da retaguarda é completar a sua missão, assegurar o seu êxito".

As vanguardas do início do século 20 -em particular o futurismo italiano e o russo, além de dadá- não reconhecem precursores nem aceitam tradição. Para elas, de maneira geral, o passado não só estava morto mas seu cadáver era letal. É nesse espírito que, por exemplo, Marinetti, em manifesto de 1909, declara que um automóvel rugidor é mais belo que a Vitória de Samotrácia, e, entre outros, Maiakovski, em manifesto de 1912, exorta os poetas a jogarem fora do navio da modernidade Pushkin, Dostoiévski, Tolstói, etc.

"Em compensação, a retaguarda", observa, com razão, Perloff, tendo em mente o concretismo, "trata as proposições da primeira vanguarda com um respeito vizinho da veneração". Perloff cita entrevista de 1993 em que Augusto de Campos explica que, na década de 50, "toda poesia experimental, toda arte experimental havia sido em certo sentido marginalizada. Só na década de 50 começou a redescoberta de Mallarmé, a redescoberta de Pound. [...] Acho que era necessário recuperar os grandes movimentos de vanguarda".

O que Perloff chama de "retaguarda" consiste, portanto, numa vanguarda que reconhece precursores. O fato de destacar essa peculiaridade do concretismo é evidentemente mais importante do que o rótulo que usa para fazê-lo. E quais são os precursores que Augusto reconhece na entrevista citada? Mallarmé e Pound, os dois primeiros poetas que haviam sido citados como precursores no "Plano-Piloto para Poesia Concreta", de 1958.

Mallarmé, que morreu antes do século 20, não fez parte de nenhum movimento de vanguarda. Já Pound fez parte de dois movimentos de vanguarda ingleses, o imagismo e o vorticismo. Esses movimentos, como os continentais, não parecem reconhecer precursores. Além disso, opõem-se ao passado imediato e às diluições vitorianas e edwardianas do romantismo. Por outro lado, ao contrário dos movimentos continentais, são capazes de valorizar, por exemplo, a poesia da antigüidade clássica.

De certo modo, porém, não seria correto dizer que Pound não reconhecesse precursores. Tomemos os princípios do imagismo, que ele publicou em 1913: tratar diretamente o objeto; não utilizar uma única palavra que não contribua para apresentá-lo; quanto ao ritmo, compor na sequência da frase musical, não na do metrônomo; refletir com exatidão o particular, e não generalidades vagas; ser preciso e claro, jamais confuso ou indefinido; ser conciso. Se tais princípios pretendem ser o resultado da destilação da grande poesia de todas as épocas, então a poesia conscientemente feita de acordo com eles toma toda grande poesia como sua precursora. Além disso, por um processo sem dúvida circular, embora não necessariamente vicioso, esses princípios, uma vez destilados, proporcionam os critérios que permitem a Pound -e, na sua esteira, a T.S. Eliot- propor ousadas reavaliações e revisões do cânone poético em vigor na sua época.

Pois bem, quando o concretismo toma Pound como precursor é porque pretende ter radicalizado e levado às últimas conseqüências as descobertas desse poeta (assim como as de Mallarmé e de outros), chegando ao extremo de -no "Plano-Piloto" de 1958- dar por encerrado o ciclo do verso. Isso estava errado, é claro, pois grandes poemas em verso foram escritos desde então. No entanto, apesar de seu radicalismo -ou melhor, por meio dele- o concretismo também foi capaz de, tendo aprendido com Pound, empreender a sua própria reconsideração e livre reapropriação da tradição. Não deve ser um acaso que não tenham sido poetas do Velho Mundo, mas americanos e brasileiros, os que precisaram levar a cabo tais reapropriações. Ao fazê-lo entre nós, o concretismo conseguiu dar a um país cuja intelligentsia costuma ser excessivamente cautelosa um exemplo de audácia muito mais significante e inteligente do que se tivesse simplesmente, ao modo das vanguardas históricas, em vão rejeitado todo precursor e toda tradição.

19.4.08

Nelson Motta: "Do sonho ao pesadelo"

O seguinte artigo de Nelson Motta foi publicado na Folha de São Paulo, sexta-feira, 18 de abril de 2008:


Do sonho ao pesadelo


RIO DE JANEIRO - Não é uma ONG, nem uma associação profissional, um partido ou sindicato, não é empresa estatal ou privada, não tem CPF nem CNPJ ou identidade, mas não paga impostos e vive dos impostos pagos pela população trabalhadora, sem prestar contas de nada a ninguém. Será um sonho? Não, são privilégios que só o MST tem.

O maior e mais incontestável sucesso do governo Lula é a política econômica, que nos proporcionou estabilidade e crescimento, além de bancar os programas sociais, inclusive os de assentamentos rurais. O MST é contra, faz protestos furiosos em frente ao Banco Central.

Justo quando a ONU e o Banco Mundial advertem para a crise de alimentos, o MST demoniza e combate o agronegócio, que produz alimentos fartos e, pelo volume de produção, mais baratos. O MST sonha acabar com ele e substituí-lo pela agricultura familiar. Em que século e planeta eles vivem?

O MST combate tudo que está dando certo no país. Porque o comandante Stédile é contra o capitalismo, a livre iniciativa e o mercado, seu objetivo declarado é substituí-los por um sistema comunista, socialista, bolivariano ou alguma outra ditadura econômica, política e social. Mas financia a sua guerra santa com os impostos da democracia que despreza, usando os direitos e o dinheiro do Estado democrático. Sua arrogância, ignorância e intolerância beiram a caricatura, mas o homem segue falando grosso: não respeita as leis que julga injustas, em nome da auto-atribuída justiça de sua causa intocável.

No século 21, num país livre e democrático, se cada um se dá o direito de atropelar a lei e o Estado de Direito, em nome de sua crença, a civilização se barbariza e o que impera é a força bruta.

O sonho do MST virou o pesadelo da democracia.

13.4.08

Nelson Ascher: Coluna

Coluna

Por que dar conta do recado
e terminar mais um artigo?
Prefiro olhar meu próprio umbigo
a trabalhar sem resultado

como que posto de castigo.
Mas, apesar de tão cansado
que quero só virar de lado
e dormir, mesmo assim prossigo.

Pra quê? Não faz nenhum sentido
e, não obstante todo estrago
que isso me causa, mal sou lido.

Escrevo e apago, escrevo e apago
o que não passa de um grunhido
que me vem d'alma ou do lumbago.


De: ASCHER, Nelson. Parte alguma. Poesia (1997-2004). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

11.4.08

Federico García Lorca: Narciso

[Narciso]

Narciso.
Tu olor.
Y el fondo del río.

Quiero quedarme a tu vera.
Flor del amor.
Narciso.

Por tus blancos ojos cruzan
ondas y peces dormidos.
Pájaros y mariposas
japonizam en los míos.

Tú diminuto y yo grande.
Flor de amor.
Narciso.

Las ranas, ¡qué listas son!
Pero no dejan tranquilo
el espejo en que se miran
tu delirio y mi delirio.

Narciso.
Mi dolor.
Y mi dolor mismo.

9.4.08

Valéry: dos "Cahiers"

alguém ou alguma coisa em mim que não quer (já são 10, 20 vezes que ele escoiceia) começar esse trabalho que devo fazer – cujas idéias estão aí – e até escritas. Mas esse recalcitrante não quer tentar. Ele não entrega a forma – inicial. Cada estratégia de começo o desgosta. O tédio é mais forte. Cata tentativa abandonada aumenta a repugnância.

– Reflexão. Eu disse: alguém. Pois é natural – primitivo – selvagem – personificar um desejo ou uma repulsa que se opõem a uma vontade conforme à pessoa; a pessoa sendo a razoável – a social e sociável – a previdente. (1932-33)

VALÉRY, Paul. Cahiers. Paris: Gallimard, 1973. p.9-10.

6.4.08

A astúcia do diabo

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 5de abril de 2008:


A astúcia do diabo

NUM POEMA em prosa, Baudelaire põe em cena um pregador segundo o qual a mais admirável astúcia do Diabo é nos persuadir de que não existe. Não é difícil entender por que, se o capeta existir, terá interesse em nos fazer crer o contrário.

Em primeiro lugar, ele saberá que quem acredita que ele existe tende a acreditar que também Deus existe (o poeta João Cabral foi a exceção que confirma a regra), coisa que não lhe interessa. Além disso, provavelmente lhe parecerá mais fácil induzir à tentação as pessoas que sequer acreditam que ele exista do que as que o temem.

De todo modo, para uma pessoa que crê que o demo não só existe como que pretende, sob algum disfarce ou através de algum mandatário, persuadir-nos de que não existe, exatamente a persuasividade e a racionalidade de seus argumentos atestarão a sua origem diabólica. E tal pessoa pensará a mesma coisa sobre qualquer consideração que ponha em questão a existência de Deus. Sendo assim, argumento nenhum jamais poderá fazê-la duvidar dessas crenças. Com efeito, a astúcia de satanás é postulada exatamente para blindá-las contra o assalto de qualquer crítica.

Naturalmente aquilo que, do ponto de vista do crente, é força, do ponto de vista da razão é fraqueza. Para esta, tudo o que se imuniza à crítica, tudo o que se furta à prova é irracional. Racionais são a própria crítica, a abertura à crítica e tudo aquilo que, enfrentando a crítica – ainda que diabólica –, a ela sobreviva. Já o irracionalismo é – como a própria tese da astúcia do Diabo – a tentativa de desqualificar o racional.

Observe-se que, se a tese – ou melhor, se a falácia – da astúcia do Diabo caracteriza o arquiinimigo de Deus como aquele que argumenta e critica, isto é, como aquele que é racional, ela explicitamente caracteriza os crentes e, implicitamente, o próprio Deus, como irracionalistas. Na verdade, embora há tempos não seja essa a doutrina dominante da Igreja Católica, trata-se de uma tese perfeitamente compatível com algumas das concepções mais vetustas do Cristianismo. O apóstolo Paulo, por exemplo, regozija-se de que, segundo o profeta Isaías, Deus mesmo tenha afirmado: "Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes".

Ora, que a doutrina de uma religião possa ser irracionalista ou conter fortes elementos irracionalistas não é surpreendente, já que ninguém é religioso graças a considerações intelectuais, mas por outros motivos, como o desejo de comunidade.

Mais surpreendente é observar que diferentes variantes da falácia da astúcia do Diabo, adaptadas para os mais diferentes fins, tenham sido adotadas por pensadores laicos e modernos.

Em psicanálise, por exemplo, a denegação é a astúcia através da qual o analisando (análogo ao Diabo) nega a interpretação do analista (análogo ao crente). Ao fazê-lo, porém, ele inconscientemente a confirma, segundo o analista. O próprio Freud – tendo reconhecido que, desse modo, garante-se sempre o triunfo do analista, pois, quando o paciente o aprova, lhe dá razão, mas, quando o contradiz, trata-se apenas de um sinal de resistência, o que de novo lhe dá razão – explica que essa questão só se resolve na prática, no contexto concreto da análise.

Um exemplo mais grave é a tese de Heidegger de que o mundo moderno já se encontra tão destituído, do ponto de vista espiritual, que não consegue mais sequer perceber a falta de Deus como uma falta. Assim, do mesmo modo que o crente supõe que aquele que negue a existência do Diabo ou de Deus involuntariamente a confirma, Heidegger supõe que aquele que negue sentir falta de Deus com isso dá, também inconscientemente, ainda maior evidência da falta que Ele faz do que aquele que abertamente reconheça sentir falta d'Ele.

Muitos outros exemplos poderiam ser dados, mas considero especialmente interessante – por poder ser estendida a grande parte do pensamento marxista sobre ideologia – a afirmação de Adorno de que a aparente liberdade em vigor no mundo moderno torna mais difícil a percepção da servidão real em que se vive, a qual, com isso, é agravada. Isso quer dizer que aquele que, no mundo moderno, pretenda ser livre ou demonstrar a sua liberdade é ainda mais dominado do que quem já se considere escravo. Pelo mesmo raciocínio, quanto menos um pensmento se considere ideológico, tanto mais o será.

É assim que, há séculos, a falácia da astúcia do Diabo tenta in limine desqualificar qualquer objeção que se pretenda fazer ao irracionalismo a que ela no fundo serve.

3.4.08

João Pereira Coutinho: "Ensaio sobre cegueira"

Eis um excelente artigo do João Pereira Coutinho, publicado na Ilustrada, da Folha de São Paulo, terça-feira, 1 de abril de 2008:


Ensaio sobre a cegueira

-- Cegueira mental começa quando a distinção entre civilização e barbárie deixa de fazer sentido --

EM SETEMBRO passado, o presidente do Irã visitou Nova York. Bizarro, sobretudo para quem deveria estar preso por suas exortações genocidas? Nem por isso. O momento bizarro da visita aconteceu na Universidade Columbia, uma vetusta casa por onde já passaram Lionel Trilling ou Jacques Barzun. Bons tempos, esses, em que a universidade não era uma pocilga.

Em 2007, e perante a platéia erudita do momento, Mahmoud Ahmadinejad, internacionalmente conhecido por sua sanidade mental, declarou que no Irã não havia "homossexuais". Toda a gente riu.

Toda, exceto o próprio Ahmadinejad. E com inteira razão. Não pretendo ser internado no manicômio na companhia dele. Mas sou obrigado a concordar com o presidente. Como é possível acreditar que o Irã tem "homossexuais" dentro das suas portas quando o regime tem sido exemplar a persegui-los, a torturá-los e a executá-los?

Os números não mentem: em 1979, uma data que será lembrada na história da humanidade como hoje recordamos a Revolução Russa de 1917 ou a chegada de Hitler ao poder em 1933, o aiatolá Khomeini iniciava a sua "revolução islâmica". E, em três décadas, o regime executava 4.000 "homossexuais", aplicando a rigorosa (mas altamente discriminatória) lei penal iraniana sobre a matéria.

Digo rigorosa mas discriminatória porque a lei penal concede às donzelas uma benevolência que está interdita aos machos: a sodomia é punida com a morte; mas o mesmo não acontece com a homossexualidade feminina. As senhoras recebem "apenas" cem açoites nas três primeiras infrações lésbicas.

Só à quarta vez conhecem o fatal destino dos homens. Quem disse que não existem vantagens em pertencer ao "sexo fraco"?

Aliás, as vantagens não se ficam pelo chicote. E não será exagero afirmar que, no Irã, só morre por homossexualismo quem quer.

Li em tempos, num artigo da jornalista portuguesa Alexandra Prado Coelho, que o regime iraniano pode condenar os homossexuais à morte. Mas o regime não se opõe a operações cirúrgicas para mudança de sexo. Pelo contrário: o financiamento estatal é bastante generoso para esse fim.

De acordo com os números oficiais, existem entre 15 a 20 mil transexuais no Irã. Mas os números "clandestinos" multiplicam a cifra por dez, o que transforma o Irã no segundo país do mundo, logo a seguir à Tailândia, com o maior número de homossexuais que optaram pelo bisturi para jogarem por outro time. O presidente Ahmadinejad sabia do que falava. Homossexuais? É tão difícil encontrar um no Irã como encontrar o saci a pular no mato brasileiro.

Mas alguns ainda pulam. Para sermos mais exatos, alguns pulam fora e procuram salvação no corrupto mundo ocidental.

Pior: de acordo com as notícias dos últimos dias, existem casos em que "homossexuais" islâmicos abandonam a riqueza e a tolerância das suas culturas locais, entregando-se de alma e coração a potências opressores e imperialistas. Como a Grã-Bretanha. Como Israel.

Na Grã-Bretanha, o governo de Gordon Brown, depois de uma ridícula hesitação diplomática, decidiu conceder asilo político a um homossexual iraniano de 19 anos.
Parece que o rapaz, de seu nome Mehdi Kazemi, depois de assistir à execução do namorado em Teerã, achou por bem não ficar mais tempo no país. Inexplicavelmente, há gente que não gosta de balas. Ou de bisturis.

Mas o caso da semana veio de Israel, essa entidade maligna que continua a envenenar o Oriente Médio: em decisão rara, Tel Aviv concedeu visto de permanência para palestino homossexual que vivia na Cisjordânia e se preparava para ser morto pelos vizinhos. Segundo parece, os palestinos não se limitam a jogar pedras contra os judeus; também praticam esse desporto contra os seus próprios homossexuais.

Exatamente como o leitor médio da imprensa ocidental média pratica o seu desporto favorito: abominar as democracias liberais onde vive pelo aplauso irracional a culturas retrógradas e até sinistras. As mesmas culturas que o condenariam facilmente à morte caso o leitor tivesse uma orientação sexual, ou religiosa, ou política, que os fanáticos considerassem intolerável.

A cegueira física é um infortúnio, sem dúvida. Mas a cegueira mental, sobretudo quando voluntária, não deixa de ser um infortúnio maior. Ela começa no dia em que a distinção entre civilização e barbárie deixa de fazer sentido.

2.4.08

Hölderlin: "An die Parzen"

Um poema de Hölderlin, seguido da sua tradução por Manuel Bandeira:



AN DIE PARZEN

Nur Einen Sommer gönnt, ihr Gewaltigen!
Und einen Herbst zu reifem Gesange mir,
Daß williger mein Herz, vom süßen
Spiele gesättiget, dann mir sterbe.


Die Seele, der im Leben ihr göttlich Recht
Nicht ward, sie ruht auch drunten im Orkus nicht;
Doch ist mir einst das Heilige, das am
Herzen mir liegt, das Gedicht, gelungen,


Willkommen dann, o Stille der Schattenwelt!
Zufrieden bin ich, wenn auch mein Saitenspiel
Mich nicht hinabgeleitet; Einmal
Lebt ich, wie Götter, und mehr bedarfs nicht.



ÀS PARCAS

Mais um verão, mais um outono, ó Parcas,
Para amadurecimento do meu canto
Peço me concedais. Então, saciado
Do doce jogo, o coração me morra.

Não sossegará no Orco a alma que em vida
Não teve a sua parte de divino.
Mas se em meu coração acontecesse
O sagrado, o que importa, o poema, um dia:

Teu silêncio entrarei, mundo das sombras,
Contente, ainda que as notas do meu canto
Não me acompanhem, que uma vez ao menos
Como os deuses vivi, nem mais desejo.