2.8.07

Sair

O último poema do meu livro A cidade e os livros:



SAIR

Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul – o céu do dia –
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.


De: CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.77.

13 comentários:

Marcello Jardim disse...

Prezado Cicero,seu poema é belo e tocante.Há tempos atrás,tentei eu mesmo alguma coragem para o desassombro diante das coisas que são e daquelas às quais nos condenamos também.Somos cínicos,mas eu acredito no que Ele faz.

Canção ao Cordeiro

Agora que a insensatez de tanto querer fez minha vida/pouca/
Agora que meu dizer à-toa foi descortinando seu nada/
Agora que as ilusões cansadas calam-me as palavras da/boca/
Logo agora numa angústia ruim,sua beleza inesperada/ vem como verdade para além de mim e me contenta,/a louca/Porque renasce do meu fim outra vez agora,outra vez,/outra.

abç

Lucas Nicolato disse...

Caro Antônio,

É um belíssimo poema. Mas, tomando-o enquanto proposição, abstraindo de seu caráter poético e usando-o como pretexto para reflexão, não posso concordar totalmente com seu conteúdo. É claro que isso não diminui o prazer estético produzido pela obra. Gostaria, no entanto, de aproveitar o pretexto para apresentar algumas questões não totalmente elaboradas, mas que achei que talvez fossem interessantes.

A gratuidade do universo não exclui necessariamente a questão de sua autoria. Não poderia ser o mundo uma "finalidade sem fim" como você diz da poesia? Se esse for o caso, seria perfeitamente aceitável a possibilidade de um autor, embora a mesma também não seja necessária. Mais importante que o conceito do autor, creio eu, é a existência ou não de um "sujeito do mundo". Há estéticas em que o sujeito ocupa uma posição central, e outras em que ele simplesmente não existe. Qual a estética do mundo em que vivemos? O mundo enquanto poema exigiria o reconhecimento de um sujeito para sua análise?

Um abraço,
Lucas Nicolato

Antonio Cicero disse...

Caro Lucas,

Como você sabe, distingo rigorosamente poesia de filosofia. Para mim, é difícil abstrair “o caráter poético” de um poema e usá-lo como pretexto: tanto mais quando se trata de um poema meu. Também não me sinto capaz de explicar um poema meu. Assim, quando você diz, por exemplo, que não pode concordar totalmente com o conteúdo do poema, pergunto-me qual será esse conteúdo.
Creio que o que você quer dizer pode ser deduzido da sua afirmação de que “a gratuidade do universo não exclui necessariamente a questão de sua autoria”. Ela me leva a supor que você atribui ao poema a afirmação oposta, ou seja, de que “a gratuidade do universo exclui necessariamente a questão de sua autoria”. Contudo, o poema não diz isso. O trecho dele de onde você pode ter inferido essa tese é certamente o seguinte: “a noite está radiante e Deus / não existe nem faz falta. Tudo é / gratuito...” Se for assim, não se trata de uma inferência válida. Esse trecho pode ser interpretado como uma série de conjunções: “a noite está radiante” e “Deus não existe” e “Deus não faz falta” e “tudo é gratuito”. Reconheço que é possível interpretar essa série de conjunções como “se Deus não existe nem faz falta, então tudo é gratuito”. Seria, repito, uma interpretação. Mesmo assim, não se poderia deduzir da proposição “se Deus não existe nem faz falta, tudo é gratuito” a proposição “se Deus existe, nem tudo é gratuito”, assim como não se poderia deduzir da proposição “se não há prisão, todos estão soltos” a proposição “se há prisão, nem todos estão soltos”. É possível que todos estejam soltos, ainda que haja prisão. É possível que tudo seja gratuito, ainda que Deus exista.
Creio que o que o poema realmente faz é celebrar a gratuidade do magnífico mistério do ser: e, reconhecer que, para tanto, Deus não faz falta.

Um abraço,
Antonio Cicero

Lucas Nicolato disse...

Caro Antônio,

De fato, acho que não me expressei bem, e supus erradamente um conteúdo no poema. Mas as questões que surgiram em minha mente continuam existindo, e suas respostas continuam sendo interessantes, ainda que no fundo não se trate do poema.
Talvez eu tenha feito uma certa confusão. É realmente um poema belíssimo, o que independe de qualquer suposta (e irrelevante) interpretação. O que eu queria realmente era usar o poema como pretexto para perguntar o que você pensa, e não o que o poema diz, sobre a questão da gratuidade do "magnífico misterio do ser" e a possibilidade de encará-lo como uma "finalidade sem fim", isto é, olhar o mundo enquanto arte, com ou sem autor.

um abraço,
Lucas Nicolato

lupuscanissignatus disse...

Respira liberdade...

Antonio Cicero disse...

Caro Lucas,

Acho que o poema é, como eu disse, uma celebração da gratuidade: o mundo é isso, essa beleza e essa dor, que são o que são e não têm nem carecem de explicação. Mas talvez o mais profundo dele seja exatamente a afirmação de que “Deus / não existe nem faz falta”.
Como eu disse, o poema não exclui a possibilidade de que, ainda que Deus exista, tudo seja gratuito. Mas, se pensarmos bem nessa hipótese – na hipótese de um Deus artista –, percebemos que é uma idéia terrível. Por que? Porque um artista – um romancista, por exemplo – pode fazer os seus personagens sofrerem: mas eles, justamente, não passam de personagens. O sofrimento não é real. No mundo, porém, o sofrimento é realíssimo. Que pensar de um Deus que crie um mundo com tanto sofrimento, apenas pelo prazer estético? E pelo prazer estético de quem, senão dele próprio? É verdade que os seres humanos às vezes também vêem beleza no mundo: vêem a beleza do crepúsculo, por exemplo; mas, muitas vezes, vêem apenas o beco, como diz Bandeira: a feiúra da miséria e da dor. Só esse Deus veria a harmonia do todo. Não seria monstruoso um Deus que fosse – na melhor das hipóteses – indiferente ao sofrimento de tantas das suas criaturas, preocupado apenas com o seu próprio deleite estético? E que tipo de Deus desejaria tal deleite? Como poderia haver desejo, ou falta de alguma perfeição, num ser perfeito?
É por isso que aqueles que querem acreditar na existência de um Deus pessoal não querem um Deus artista ou esteta, mas um Deus bom: um Deus que se importe com eles; que justifique o sofrimento pelo qual eles passam; que até sofra com eles, como Cristo; que tenha feito do bem supremo o fim último de tudo, e feito desta vida uma espécie de vestibular para o céu. E, como todo vestibulando sério, deveríamos nos concentrar nos estudos e não nos falsos prazeres deste mundo, lembrando que grande parte dos vestibulandos fracassam. Mas, nesse caso, o sentido do mundo seria transcendente; e, em última análise, o verdadeiro real seria transcendente. Nada seria gratuito. Tudo adquiriria o seu sentido a partir do outro mundo, a partir da morte. Ora, isso seria o oposto da celebração deste mundo: seria antes, como diz Nietzsche, a sua degradação a um sombrio sub-mundo.
Por isso diz o poema que “Deus / não existe nem faz falta”. É melhor assim.

Abraço,
Antonio Cicero

Anônimo disse...

Antonio, que maravilha de poema! A sensação da ida... Adorei! Você está linkado no meu novo blog ;)) Quando tiver tempo, passe por lá.

Um beijO!
Ana

Anônimo disse...

Prezado Cicero,
Permita-me expor algumas dúvidas sobre o fato de você distinguir rigorosamente poesia de filosofia e também sobre sua consideração "o verdadeiro real seria transcendente".
Adequar o discurso à natureza do que se faça tema,seja poesia ou filosofia,é atitude lógica que quer reunir as coisas sob determinados critérios.Mas de que horizonte se pode constituir tal visada lógica? Que toda arte seja portadora de sua contradição insolúvel naquela "finalidade sem fim",pela qual Kant definiu o estético,é talvez o índice de que ela comporte um elemento selvagem hostil a quaisquer confinamentos discursivos.Heraclitianamente,tais discursos nunca seriam o Discuro:"De quantos ouvi discursos,ninguém chega a compreender que o saber está separado de todos".Não que tais discursos sejam sempre inadequados,eles não seriam é suficientes.E insuficientes onde o horizonte que contemplam é um horizonte sempre determinado historicamente.Pode a razão crítica prescindir do sujeito da razão crítica?Se não,o fato da razão vir da natureza em nada alteraria que sua efetividade esteja contida no mesmo horizonte histórico do sujeito em que ela opera.Daí pode-se interrogar se tal sujeito está além ou aquém dessa sua singularidade que não lhe permite ser inteiramente transparente e livre dessas contingências concretas.
Tal insuficiência do alcance dos discursos parece escancarar-se quando tocam a questão da verdade.Quando,no seu comentário posts acima,você alude a um "verdadeiro real",toma por referência uma noção subjetiva de transcendentalidade?Acho que um contraponto válido às suas considerações está no modo como Heidegger tratou a questão da verdade :"A proposição não é o lugar da verdade,mas a verdade é o lugar da proposição".Ele descarta uma certa mitologia das palavras presente no caráter tautológico das proposições lógicas.Mas não foge de trabalhar num estatuto em que procura desenvolver suas proposições não empíricas.Dessubjetiviza a transcendentalidade na analítica existencial,esta sendo o explicitar das condições de possibilidade do que significa fundamentar.E a isso associa a idéia de verdade.Pragmático,atribui à verdade um papel fundador,assim como Wittgenstein se afirma ao final do "Tractatus":"Deve-se calar sobre aquilo de que não se é capaz de falar",numa referência às proposições ali desenvolvidas e que Heidegger desenvolve em Ser e Tempo,isto é, proposições que não têm o caráter de verdade ou falsidade,mas que pretendem fundá-las como propriedades de proposições.Wittgenstein:"Mundo é algo do qual eu não posso predicar nem verdade ou falsidade,mas de tudo o que eu predico verdade ou falsidade se pressupõe o mundo".Logo,mundo teria um caráter transcendental.E verdade seria "veritas transcendentalis".
Obrigado por ler e abç

Lucas Nicolato disse...

Caro Antônio,

Obrigado pela resposta!
Talvez a idéia de que "Deus existe e tudo é gratuito" seja realmente terrível, mas muitas vezes me parece uma possibilidade. E o terrível muitas vezes é também maravilhoso. A idéia de um Criador estético talvez seja desesperadora para alguém que busca nele uma justificativa transcendete para o mundo. Mas como eu poderia me desesperar com a idéia de que o sofrimento também foi criado por Deus, por razões meramente estéticas, se a existência do sofrimento (ou do mal), não é para mim motivo de desespero? Talvez seja por isso que os antigos povos europeus acreditavam em deuses tão humanos, porque não os viam como justificativas para um mundo inaceitável, mas como uma ampliação do próprio mundo natural que amavam.

um abraço,
Lucas

Antonio Cicero disse...

Caro Marcello,

Tenho a impressão de que você não acompanhou a discussão sobre a distinção entre poesia e filosofia, que se encontra em outros pontos deste blog e, em particular, nas postagens do mês de junho. Nelas, explico em que penso fundamentar-se essa distinção. Veja, por exemplo, as postagem de 21/06.

De fato, a razão crítica não se separa do sujeito da razão crítica; mas esse sujeito não é empírico ou singular, e sim transcendental e universal. Ele é o sujeito que, através da razão crítica, que é natural ao ser humano, abstraiu, isto é, separou-se das condições históricas e concretas em que vive.

Suponho que você poderá retorquir: “mas é impossível transcender um horizonte historicamente determinado”. Mas então eu poderei responder: “de que ponto de vista você diz que é impossível transcender um horizonte historicamente determinado? Se o diz de um ponto de vista historicamente determinado, então o seu enunciado, ele mesmo, não pode transcender o horizonte historicamente determinado em que se enuncia. Logo, ele não possui universalidade, e não se aplica senão aos enunciados que se dão no seu próprio horizonte historicamente determinado. Ora, esse horizonte não é o meu; logo, esse enunciado não se aplica a mim. Se, por outro lado, você o diz a partir de um ponto de vista transcendental, então ele possui universalidade; mas, nesse caso, é possível transcender um horizonte historicamente determinado, de modo que esse enunciado consiste numa autocontradição performativa, e se anula”.

No comentário a que você se refere, em que falo de um “verdadeiro real”, observe que não estou exprimindo o que eu penso, mas dizendo o que penso ser o desejo daqueles “que querem acreditar na existência de um Deus pessoal”.

Quanto à noção de verdade de Heidegger, o “desvelamento”, penso, como Ernst Tugendhat, que foi seu aluno, que ela é inaceitável, pois, em última análise, não tem mais como oposto a falsidade. Ora, o conceito de verdade não faz sentido sem o seu oposto, o conceito de falsidade. O desvelamento não pode ser, portanto, a verdade do conceito da verdade.

Observo ainda que o fragmento 108 de Heráclito, que você cita, pode ser interpretado a meu favor, pois a razão crítica é a razão que separa – e que se separa – dos discursos que critica. Poucos entendem que ela está separada de tudo – logo, da história – por ser transcendental.

Além disso, lembre-se de que Heráclito também separava a sabedoria da poesia, desprezando Homero, Hesíodo e os poetas em geral, que, para ele, eram falsamente considerados sábios.


Um abraço,
Antonio Cicero

ams disse...

Belo, belo, mais que belo...

Anônimo disse...

Prezado Cicero,
Antes de mais nada,devo agradecer-lhe a atenção e a oportunidade pelo diálogo que,para mim, é muito proveitoso.Já estou indo conferir seu post sobre a distinção poesia/filosofia.
Quanto ao estatuto da razão crítica,seu caráter transcendental e seu trânsito e afinidade com o pensamento de Heráclito,enfim,nada disso poderia estar mais distante de uma razão feita refém de racionalismos como eu equivocadamente,ainda que em parte, supus.
Sobre a questão da verdade heideggeriana,peço licença para tentar uma distinção que tem cabimento aqui:No parágrafo 44 de Ser e Tempo,Heidegger procura circunscrever a necessidade de uma verdade originária,porém,sem confundí-la com a verdade como propriedade de proposições (caso da verdade a que você se refere,como oposição lógica).Vale ressaltar a idéia de que a verdade fenomenológica heideggeriana,a "veritas transcendentalis",não quer conflitar com a discussão lógica da verdade nem com a discussão da verdade ou falsidade como propriedades de proposições empíricas,o que tornaria inoperante a objeção de inaceitável que você faz a ela.O que Heidegger parece querer circunscrever é o caráter transcendental da verdade como lugar que possibilite uma relação sujeito-objeto onde,aí sim,se poderia constituir uma proposição do tipo verdadeira ou falsa.E esse lugar transcendental não seria um lugar transparente como o cogito cartesiano ou o eu penso kantiano ou ainda aquela consciência que se pensa a si mesma pela transparência,hegeliana.Aqui tbém aparecem restrições àquela transcendencia plena de um horizonte historicamente determinado.Consequentemente,Heidegger põe o acento no sum do cogito cartesiano pque neste sum há a singularidade da situação do dasein,e porque este sum não seria apenas uma constatação de que algo é,mas de alguém que sabe que é,e não numa pura representação;ele sabe que é na prática de seu ser-no-mundo.Por fim,em Heidegger,verdade e não-verdade são duas dimensões que determinam esse modo de ser-no-mundo e é nesse contexto,nesse caráter possibilitante que ele dá ao dasein,nesse espaço é que se distingue a verdade originária,onde é possível ser verdadeiro ou falso.
Mais uma vez obrigado e um abraço,
Marcello.

Unknown disse...

Sair. O mais belo poema.