29.3.07

António Aleixo: Quadra

Uma extraordinária quadra do poeta português António Aleixo:


Sei que pareço um ladrão...
Mas há muitos que eu conheço
que, sem parecer o que são,
são aquilo que eu pareço.

28.3.07

Sosígenes Costa: Pavão Vermelho

Pavão Vermelho

Ora, a alegria, esse pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.

Clarim de lacre, esse pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.

É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
nesse pavão pomposo e de chavelho.

Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei esse pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.



De: Sosígenes Costa. Poesia completa. Salvador: Conselho Estadual de Cultura, 2001, p.44.

27.3.07

Oscar Wilde: The Critic as Artist

Do diálogo de Oscar Wilde O crítico como artista (The critic as artist):

Ernest: Mas qual é a diferença entre a literatura e o jornalismo?
Gilbert: O jornalismo é ilegível, e a literatura niguém lê. É só.


Ernest: But what is the difference between literature and journalism?
Gilbert: Oh! journalism is unreadable, and literature is not read. That is all.

25.3.07

Slavoj Zizek: "O cavaleiro dos mortos vivos"

Traduzi e publico a seguir um importante artigo de Slavoj Zizek, aparecido ontem (24/03) no New York Times:


O cavaleiro do mortos vivos

Desde a divulgação das dramáticas confissões de Khalid Shaikh Mohamed, a indignação moral com a extensão dos seus crimes foi acompanhada por dúvidas. Pode-se acreditar em suas afirmações? E se ele confessou mais do que fez realmente, ou por um vão desejo de ser lembrado como o grande “fera” do terrorismo, ou porque se dispôs a confessar qualquer coisa para interromper o afogamento simulado e outras “técnicas aperfeiçoadas de interrogação”?

Se há um aspecto surpreendente nessa situação, ela tem menos a ver com as próprias confissões do que com o fato de que, pela primeira vez em muitos e muitos anos, a tortura foi normalizada: apresentada como algo aceitável. As conseqüências éticas disso deveriam ser objeto da preocupação de todos nós.

Posto que o alcance dos crimes do Sr. Mohamed é claro e horripilante, vale a pena observar que os Estados Unidos parecem incapazes de tratá-lo como trataria o pior dos criminosos: no mundo ocidental civilizado, até o mais depravado assassino de crianças é julgado e punido. Mas qualquer julgamento e punição legal do Sr. Mohamed é agora impossível: nenhuma corte que opere nos quadros dos sistemas legais ocidentais é capaz de lidar com detenções ilegais, confissões obtidas sob tortura ou coisas semelhantes. (E isso corresponde, perversamente, ao desejo do Sr. Mohamed de ser tratado como inimigo, não como criminoso).

É como se não apenas os terroristas mesmos, mas também a luta contra eles tenha agora que continuar numa zona cinzenta da legalidade. Assim temos criminosos “legais” e “ilegais” de fato: os que devem ser tratados de acordo com procedimentos legais (com advogados etc.) e os que estão fora da legalidade, sujeitos a tribunais militares ou encarceramento aparentemente interminável.

O Sr. Mohamed tornou-se o que o filósofo político Giorgio Agamben chama de “homo sacer”: uma criatura legalmente morta, embora biologicamente ainda viva. E ele não é o único a viver num mundo intermediário. As autoridades americanas que lidam com os detidos tornaram-se uma espécie de contrapartida do homo sacer: ao agir como poder legal, operam num espaço vazio que é sustentado pela lei e, no entanto, não é regulado pelo império da lei.

Há quem não considere isso um problema. O contra-argumento realista diz: A guerra ao terrorismo é suja, encontramo-nos em situações em que as vidas de milhares podem depender da informação que obtemos dos prisioneiros, e precisamos tomar medidas extremas. Como Alan Dershowitz, da Escola de Direito de Harvard o formula: “Não sou a favor da tortura, mas, se ela ocorrer, tem que ter aprovação da corte, sim senhor”. Bem, se isso é a “honestidade”, acho que fico com a hipocrisia.

Sim, a maior parte das pessoas consegue imaginar uma situação singular em que poderia recorrer à tortura: por exemplo, para salvar uma pessoa amada de um mal imediato e impensável. Eu consigo. Em tal caso, porém, é crucial que eu não eleve essa escolha desesperada a um princípio universal. Na urgência inevitável e brutal do momento, eu simplesmente o faria. Mas isso não pode se tornar um padrão aceitável: devo reter o sentido próprio do horror do que fiz. E quando a tortura se torna apenas outra coisa na lista das técnicas do contra-terrorismo, perde-se todo sentido de horror.

Quando, na quinta série do programa de TV “24”, torna-se claro que o gênio que arquitetara o plano terrorista era o próprio presidente, ficamos ansiosos por saber se Jack Bauer aplicará ao “líder do mundo livre” sua técnica padrão, ao lidar com terroristas que se recusam a divulgar segredos que possam salvar milhares de pessoas. Ele torturará ou presidente?

A realidade superou a TV. O que “24” ainda tinha a decência de apresentar como a escolha inquietante e desesperada de Jack Bauer agora se apresenta como um negócio rotineiro – business as usual.

De certo modo, os que se recusam a defender a tortura explicitamente mas a aceitam como um assunto legítimo de debate são mais perigosos do que os que a endossam explicitamente. A moralidade jamais é apenas um assunto da consciência individual. Ela só vige se for sustentada pelo que Hegel chamava de “espírito objetivo”, pelo conjunto de regras ágrafas que formam o contexto da atividade de todo indivíduo, dizendo-nos o que é aceitável e o que é inaceitável.

Por exemplo, um sinal claro de progresso na sociedade ocidental é que não é necessário discutir sobre a violação: é “dogmaticamente” claro a todo o mundo que a violação é errada. Se alguém defendesse a legitimidade da violação, seria considerado tão ridículo que se desqualificaria de qualquer consideração ulterior. E o mesmo deveria valer para a tortura.

Será que temos consciência do que está no fim da estrada aberta pela normalização da tortura? Um detalhe importante da confissão do Sr. Mohamed dá uma pista. Conta-se que os interrogadores se submeteram ao afogamento simulado e só conseguiram suportá-lo em média por menos de 15 segundos, antes de se disporem a confessar seja lá o que for. O Sr. Mohamed, porém, obteve a admiração relutante deles por suportá-la por dois minutos e meio.

Será que temos consciência de que a última vez em que tais coisas fizeram parte do discurso público foi no final da Idade Média, quando a tortura ainda era um espetáculo público, um modo honrável de testar um inimigo capturado que ganharia a admiração do populacho que agüentasse a dor com dignidade? Será que queremos realmente voltar a esse tipo de ética de guerreiro primitivo?

É por isso que, no final, as maiores vítimas da banalização da tortura somos nós, o público informado. Uma parte preciosa da nossa identidade coletiva perdeu-se irrecuperavelmente. Estamos no meio de um processo de corrupção moral: os que estão no poder estão literalmente tentando quebrar uma parte da nossa coluna dorsal ética, amortecer o que talvez seja a maior conquista da nossa civilização, a criação da nossa sensibilidade moral espontânea.

24.3.07

Poema de Nuno Atalaia

A seguir, um belo poema do poeta português Nuno Atalaia, de quem já tive oportunidade de falar neste blog (postagem de 17/02):



Antínoo terá de morrer
Para que amar se faça
Palavra

Tão vasta como
As ondas onde
Desaguou seu corpo

21.3.07

Pólo de Pensamento -- POP

Já está no ar o site do Pólo de Pensamento Contemporâneo – POP, que oferecerá cursos alta voltagem sobre os assuntos mais quentes da atualidade. O endereço é:
http://www.polodepensamento.com.br.

20.3.07

Conservadores e reacionários

Hoje, Luiz Felipe Pondé assina, na Folha de São Paulo, um artigo intitulado “Dez teses contra Babel”. A primeira tese começa com a afirmação de que “Reacionário é um termo comum em assembléia e bares. Visa tornar a vítima inelegível para jantares inteligentes, aniquilando a sua vida acadêmica”. Dado que a chamada para minha entrevista à Ilustrada (03/03) dizia “Há uma ofensiva reacionária no país” e, na entrevista, eu mencionava explicitamente Pondé, suponho que é a mim que ele visa, ao tentar desqualificar os usuários do termo “reacionário”.
Garanto que não tive a mínima intenção de privá-lo de jantares inteligentes ou de aniquilar a sua vida acadêmica, e que espero sinceramente que nenhuma dessas duas coisas tenha ocorrido ou venha a ocorrer por causa da minha entrevista. Tampouco me interesso pela linguagem comum em assembléias ou bares. Minha intenção foi simplesmente a de ser preciso. Dado que não vivemos, hoje, na Idade Média, aqueles que defendem a restauração de valores medievais não querem conservar coisa alguma: logo, não devem ser chamados de “conservadores”. A palavra certa para eles é “reacionários”.

17.3.07

A simbiose entre a demagogia e o terrorismo

Segundo João Pereira Coutinho, a minha denúncia, em entrevista à Folha Ilustrada (04/03), da existência de uma aliança entre a demagogia reacionária e religiosa (da administração americana) e o terrorismo reacionário e religioso equivale a dizer que Bush é igual a Bin Laden. Está errado. No mesmo dia (14/03) em que apareceu a coluna em que Coutinho dizia isso, o New York Times afirmava, em editorial intitulado “Política Pura e Cínica”, que a demissão, politicamente motivada, de oito promotores americanos, “é apenas uma parte da sórdida história da administração Bush de brandir o megafone sangrento de 11 de setembro pelo mais mesquinho dos motivos: a perpetuação do poder pelo poder”. É exatamente nessa “sórdida história” que consiste a simbiose – a aliança objetiva de que eu falava – entre a demagogia e o terrorismo. Coutinho diria que o New York Times afirma que Bush é igual a Bin Laden? Duvido. Roosevelt foi aliado de Stalin contra Hitler. Seria lícito inferir-se que Roosevelt era igual a Stalin?

16.3.07

Os sentimentos e as leis

Na carta à Folha (09/03) em que respondo às críticas que me haviam sido feitas por João Pereira Coutinho (07/03), digo que, ao contrário do que ele insinuara sobre a modernidade que defendo, é claro que há, nela, lugar para o sentimento. “Cada qual”, prossigo, “tem o direito de exprimir os seus sentimentos, que podem ser inteiramente diferentes de um indivíduo para o outro e que, como tudo no mundo, estão sujeitos a serem discutidos e criticados. Por isso mesmo, porém, as regras que possibilitam a coexistência de todas as diferenças – por exemplo, a de que ninguém tem o direito de impor os seus sentimentos aos outros – não podem deixar de ser universais e racionais”.
Coutinho acha que é impossível destrinçar desse modo o emocional do racional e, para prová-lo, relata o caso de Patrick e Susan Stübing, “dois irmãos que se apaixonaram, procriaram (quatro filhos) e que agora desejam derrubar a lei que proíbe o incesto. Fato: Patrick e Susan só se conheceram na idade adulta. Mas, ao contrário das personagens de Eça de Queirós, eles conheciam a filiação”. Segundo Coutinho, o que penaliza o incesto na Alemanha (e no Reino Unido) é “um fundo de repulsa emocional perante a idéia de que dois irmãos; uma mãe e um filho; um pai e uma filha possam viver como amantes. E quando falo de ‘repulsa emocional’, pretendo significar precisamente isso: uma reação instintiva que não tem nenhuma explicação racional”.
Pois bem, a verdade é que o exemplo de Coutinho prova exatamente o oposto do que ele supõe: isto é, prova a minha tese. Sem dúvida, a lei contra o incesto, tanto na Alemanha quanto no Reino Unido, originou-se desse “fundo de repulsa emocional” de que ele fala. Entretanto, ela está sendo questionada publicamente por Patrick e Susan. Quais são os argumentos de um lado e de outro?
No que segue, cito principalmente o SPIEGEL ONLINE (http://www.spiegel.de/panorama/justiz/0,1518,469479,00.html; http://www.spiegel.de/politik/deutschland/0,1518,468194,00.html). Os advogados do casal alegam que o Parágrafo 173, que proíbe o incesto, constitui uma inaceitável intromissão no direito fundamental da autodeterminação sexual dos adultos. Jerzy Montag, político do Partido Verde, considera que essa lei não se adapta ao século XXI, pois a moral não se impõe pelo código penal. Dieter Wiefelspütz, especialista jurídico do Partido Social Democrata, diz que o incesto ofende as concepções morais, “mas não considero que seja criminoso”. Wolfgang Neskovic, porta-voz jurídico dos partidos de esquerda no Bundestag, considera que não há fundamentos racionais para uma proibição. O Parágrafo seria, para ele, expressão de concepções morais ultrapassadas, que não devem ser tratadas por meio do direito penal. Neskovic lembra que o adultério e a homossexualidade já foram criminalizados na Alemanha. “Assim também o Parágrafo 173 é um remanescente da penalização do sexo no século passado”. Outros chamam atenção para o fato de que a Alemanha devia seguir o exemplo de muitos outros países, como a França, a Bélgica, a Holanda, Luxemburgo, Portugal, a Turquia, o Japão, a Argentina e o Brasil, onde o incesto não é mais um crime. “A questão é se a lei criminal deve ser usada para proteger as crenças culturais e puramente morais da sociedade”, observa Joachim Renzkikowski, especialista em lei criminal sexual da Universidade de Halle. E completa: “eu diria que não”.
E quanto aos que defendem o Parágrafo 173, será que se baseiam nos sentimentos da maioria? Não: nem eles o fazem. Fundamentam-se principalmente na presunção de que crianças geradas por relações sexuais entre parentes de primeiro grau tenham maior probabilidade de desenvolverem anomalias congênitas. Um dos mais ferrenhos defensores da lei, Norbert Geis, do Partido Democrata Cristão, afirma que, se depender dele, jamais se abolirá o Parágrafo 173, pois é preciso garantir “a defesa da família, a incolumidade psíquica das pessoas e a saúde das crianças”.
Seja qual for, portanto, a posição que se tome, o fato é que os argumentos usados, tanto por um lado quanto pelo outro, são principalmente racionais. Quase todos julgam, com razão, que os sentimentos morais pertencem à esfera privada e nela se resolvem, e quase ninguém apela a eles. É que, no mundo moderno, a lei, que pertence à esfera pública e deve ser universal, não se pode basear em sentimentos, que variam de época para época, de região para região, de pessoa para pessoa e, às vezes, em cada pessoa, de um momento para o outro, mas unicamente na razão, que se manifesta na discussão e na crítica.
Coutinho termina seu artigo afirmando que é a repulsa emocional que penaliza o incesto na Alemanha (e no Reino Unido): “porque se entende que a ‘sexualização’ da família excede um limite que a razão é incapaz de explicar, mas que os sentimentos da maioria justificam plenamente”. Ora, a discussão que cito mostra exatamente que os “sentimentos da maioria” não são mais, no mundo moderno, considerados como suficientes para justificar a penalização do incesto. E quando Coutinho encerra o seu artigo com a pergunta: “Serão os alemães, ou os ingleses, exemplos pré-modernos de romantismo reacionário?”, deve-se responder: A modernidade ainda não se realizou inteiramente em lugar algum, pois enfrenta resistências imensas. Os povos contemporâneos são desigualmente modernos. No que diz respeito à questão do incesto, como a qualquer outra, é moderno quem a submete seriamente à discussão racional (e é o que fazem, no momento, os políticos e juristas alemães que acima citei); e pré-moderno quem tenta subtraí-la a essa discussão, apelando ao irracional.

14.3.07

João Cabral sobre Theodor Adorno

Gosto muito do que, a partir de uma pergunta de Luiz Costa Lima, João Cabral -- no número a ele dedicado dos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles, em 1996 -- declarou sobre Theodor Adorno. Não concordo, porém, com o que ele diz sobre Rilke. Terá realmente havido, no século XX, algum poeta maior do que o autor dos Neue Gedichte? Duvido. Mas eis o trecho a que me refiro:

Luiz Costa Lima: Infere-se do que Theodor Adorno declarou certa vez que, depois de Auschwitz, se tornou extremamente difícil escrever um poema (sua formulação por sinal era muito mais contundente). Você concorda que o mundo atual tornou difícil ou mesmo impõe uma prática distinta da tradição que se desenrola, digamos, de Petrarca a Rilke?

João Cabral: Não. Cada poeta reflete sua época. O mundo não parou depois de Rilke. Existem muitos poetas maiores que Rilke depois dele.

Marly de Oliveira: A propósito desta pergunta, você não teria algo a acrescentar a respeito da colocação de Adorno?

João Cabral:A afirmação do Adorno é uma boutade, porque o mundo não se detém e sempre foi violento. A poesia nasceu muito mais da infelicidade que da felicidade. Depois da Primeira Guerra houve grandes escritores, desde Valéry até os surrealistas.

12.3.07

Ezra Pound transcriado por Augusto de Campos

Um dos poemas mais bonitos que conheço é uma transcriação para o português, feita por Augusto de Campos, de um poema de Ezra Pound. A palavra “transcriação” não podia ser mais adequada, já que o poema em português é mais bonito do que no inglês original; ou, como dizia Borges, “el original es infiel a la traducción”. É que o inglês de Pound, neste poema – como em muitos outros – é excessivamente eduardiano, com uma pitada de Swinburne, isto é, com uma tendência ao vitoriano: e isso o torna datado. Já o português de Augusto é perfeito. Mas deixo o leitor julgar por si: apresento, em primeiro lugar, a transcriação de Augusto, e, em seguida, o original de Pound.


E ASSIM EM NÍNIVE

“Sim, sou um poeta e sobre a minha tumba
Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas
E os homens, mirto, antes que a noite
Degole o dia com a espada escura.

“Vê! Não cabe a mim
Nem a ti objetar,
Pois o costume é antigo
E aqui em Nínive já observei
Mais de um cantor passar e ir habitar
O horto sombrio onde ninguém perturba
Seu sono ou canto.
E mais de um cantou suas canções
Com mais arte e mais alma do que eu;
E mais de um agora sobrepassa
Com seu laurel de flores
Minha beleza combalida pelas ondas,
Mas eu sou um poeta e sobre a minha tumba
Todos os homens hão de espalhar pétalas de rosas
Antes que a noite mate a luz
Com sua espada azul.

“Não é, Raana, que eu soe mais alto
Ou mais doce que os outros. É que eu
Sou um Poeta, e bebo vida
Como os homens menores bebem vinho.”

Do livro:
POUND, E. Antologia poética de Ezra Pound. Organização, apresentações e traduções por CAMPOS, A.; CAMPOS, H.; FAUSTINO, M.; H; PIGNATARI, D.; GRÜNEWALD, J.L. Lisboa: Ulisséia, 1968.



AND THUS IN NINEVEH

"Aye! I am a poet and upon my tomb
Shall maidens scatter rose leaves
And men myrtles, ere the night
Slays day with her dark sword.

"Lo! this thing is not mine
Nor thine to hinder,
For the custom is full old,
And here in Nineveh have I beheld
Many a singer pass and take his place
In those dim halls where no man troubleth
His sleep or song.
And many a one hath sung his songs
More craftily, more subtle-souled than I;
And many a one now doth surpass
My wave-worn beauty with his wind of flowers,
Yet am I poet, and upon my tomb
Shall all men scatter rose leaves
Ere the night slay light
With her blue sword.

"It is not, Raana, that my song rings highest
Or more sweet in tone than any, but that I
Am here a Poet, that doth drink of life
As lesser men drink wine."

11.3.07

Rafael Alberti

SE EQUIVOCÓ LA PALOMA

Se equivocó la paloma.
Se equivocaba.
Por ir al norte, fue al sur.
Creyó que el trigo era agua.
Se equivocaba.

Creyó que el mar era el cielo;
que la noche, la mañana.
Se equivocaba.

Que las estrellas, rocío;
que la calor, la nevada.
Se equivocaba.

Que tu falda era tu blusa;
que tu corazón, su casa.
Se equivocaba.

(Ella se durmió en la orilla.
Tú, en la cumbre de una rama.)

10.3.07

Hudson Carvalho sobre Hugo Chávez

CHÁVEZ É UM RETRATO DAS DIFICULDADES DAS ESQUERDAS

* Hudson Carvalho

A queda do Muro de Berlim, em 1989, cristalizou-se como marco do ocaso do comunismo, embora algumas poucas experiências anacrônicas, como Cuba, ainda sobrevivam. Com o desmoronamento do comunismo, Francis Fukuyama decretou açodada e equivocadamente o fim da história, e, de lá para cá, ex-comunistas e esquerdistas tatuados de outras linhagens buscam reconstruir os seus espaços e as suas utopias.
Paralelamente, os postulados da economia de mercado instalaram-se avassaladoramente, alojando a primazia do capitalismo como verdade absoluta e quase universal. Com isso, esquerdistas de todo o mundo passaram a vagar catatônicos em um limbo existencial.
Os ensaios intermediários, moderados, gerenciados por esquerdistas envernizados na social-democracia, tiveram, parcial e temporariamente, algum êxito em países europeus de economia pujante. Depois, mesmo nesses ambientes, o tamanho do estado começou a transbordar e a fissurar mais ainda os experimentos esquerdistas, inclusive os reciclados e democráticos.
Ao mesmo tempo, com o término da polarização capitalismo versus comunismo, apresentaram-se os novos conflitos universais, que se acentuaram com a ascensão de George Bush nos Estados Unidos. No lugar do clássico confronto direita contra esquerda, estabeleceram-se outros tipos de colisões, alguns animados por estandartes religiosos.
Apesar de tudo isso, nada indica, porém, que se possa realmente abonar a morte das ideologias. Pelo contrário. O planeta continua a se mover sobre eixos ideológicos; agora, mais fracionados, sem a nitidez e a bipolaridade exclusiva das referências anteriores.
Na América Latina, por exemplo, é quase unânime o questionamento governamental ao liberalismo rubricado pelo Consenso de Washington. Tornamo-nos, com maior ou menor ênfase, dependendo do país, bastiões retóricos de resistência à lógica capitalista, a despeito de, na prática, continuarmos vivendo sob o seu predomínio. Pelo menos, rugimos e bravateamos. Nesse contexto, destaca-se o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, com suas gabolices.
Que Chávez encarne o que é melhor para a Venezuela no momento, diante de uma avara e corrupta oligarquia que mandou e desmandou inconseqüentemente naquele país por muitos anos, vá lá. Mas, entre isso e transformá-lo em líder regional e símbolo da regeneração esquerdista, cabe uma distância abissal. Caricato e antidemocrático, Chávez pode atender, no máximo, a aspirações emergentes na Venezuela e cercanias. Levá-lo, entretanto, a sério como guia deprecia a própria esquerda.
Idolatrá-lo pelo seu barroco antiamericanismo destaca ainda mais os descaminhos em que as esquerdas se encontram. Não é por considerarmos George Bush altamente pernicioso, que devemos, automaticamente, ter apreço pelo seu vaniloqüente crítico. Chávez não é alternativa a Bush. Guardando-se as proporções pela relevância suprema dos Estados Unidos, eles são da mesma cepa, sendo que o ruinoso governo Bush tem prazo de validade ajuizado pelo rito democrático americano.
Na verdade, sob o garrote do pensamento único que disciplinou as esquerdas durante quase todo o século passado, é difícil para essa gente raciocinar além de vertentes binárias e excludentes. Para as esquerdas, é tudo branco ou preto. Não há matizes nem relativismos; só o limitado império do absoluto.
Espelhar-se em uma figura como Chávez é sublinhar as deficiências e as estreitas divisas da própria esquerda. É verdade que, em um tempo de tantas inovações, por paradoxo, não está fácil, para as esquerdas, desbravarem veredas singulares. Elas, no entanto, é que devem ser buscadas, ambicionadas. Este é o desafio da esquerda: renovar-se na procura de rumos originais indubitavelmente democráticos, pois o socialismo do século XXI, apregoado por Hugo Chávez, não é historicamente futuro, é passado. E, como tal, repete-se como farsa, como, aliás, já alertara Marx.

* Jornalista.

9.3.07

Eugénio de Andrade

Mar de setembro

Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves -- só
ritmo e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto.
Puríssimo. Doirado.



[Eugénio de Andrade. Do livro Mar de setembro. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 1977.
Incluído na antologia Poemas de Eugénio de Andrade. Seleção, estudo e notas de A. Saraiva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.69.]

8.3.07

Resposta a João Pereira Coutinho

Ontem, na Ilustrada, o colunista João Pereira Coutinho atacou a entrevista que dei a esse mesmo caderno da Folha de São Paulo, e que se encontra publicada abaixo.

Não me surpreende que ele não tenha gostado da minha entrevista. Afinal, ela surgiu a partir de determinadas críticas que fiz às declarações de Luiz Felipe Pondé à mesma Ilustrada; ora, em artigo de 31/1, Coutinho demonstrara sentir não apenas “alguma”, como diz, mas muita admiração pelas mesmas declarações de Pondé.

O que me surpreende é que, acusando-me de estar disposto a assinar clichês, ele diga, em primeiro lugar, que eu cometo a insensatez de “comparar uma democracia como a norte-americana... enfiando-a no mesmo saco de fanatismos tribais”. A formulação é confusa, porém se o que ele quer dizer é que eu não respeito ou levo a sério a democracia americana, comete uma calúnia.

Mas o pior vem depois: “Dizer que Bush é igual a Bin Laden pode fazer as delícias dos simples. Não deveria fazer as delícias de Cicero”. Ora, dado que jamais afirmei tal coisa, jamais a pensei, e nem sequer menciono Bin Laden na referida entrevista, Coutinho tirou da sua própria cabeça essa falsa equivalência. Em outras palavras, os clichês que ele critica não são meus, mas dele.

Suponho que o que ocasionou seu ato falho foi a minha condenação do fato de que Bush conseguiu fazer o Congresso, quando este era ainda era majoritariamente Republicano, aprovar uma lei que, em alguns casos, põe fora de ação o habeas corpus e admite a tortura. Trata-se do Military Commissions Act. Ora, que essa lei sinistra seja profundamente anti-democrática e fira gravemente a democracia americana não é opinião só minha. Por ocasião da sua aprovação pelo Congresso, o New York Times (28/9/2006), por exemplo, declarou em editorial que, no futuro, os americanos se lembrarão de que, “em 2006, o Congresso passou uma lei tirânica que será considerada como um dos pontos baixos da democracia americana”. É justamente por prezar a democracia – e a Constituição – americana que eu, como o New York Times, repudio a lei anti-democrática de Bush.

Finalmente, Coutinho pergunta de que modernidade eu estou a falar, já que, segundo ele, “não existe uma, existem várias modernidades”. Não concordo com esta última tese, e já escrevi um livro sobre esse assunto (O mundo desde o fim). Mas não é necessário entrar aqui num argumento filosófico complexo. Aceitemos, disputationis gratia, que existam várias modernidades. De que modernidade estarei a falar? Ou melhor: que modernidade estarei a defender contra aqueles que chamo de reacionários? Defendo, é claro, a modernidade que descrevo explicitamente na entrevista: aquela “que garante, através da institucionalização de sociedades laicas e abertas, a dúvida e a crítica, que constituem a racionalidade”; a que torna possíveis “o Estado de direito, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual, a abertura do mundo a novas possibilidades, a coexistência de uma multiplicidade de culturas e formas de vida, a pluralidade de expressões eróticas, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc”.

Na modernidade que defendo existe, sim, mais do que em qualquer sociedade pré-moderna, lugar para a coexistência de uma multiplicidade de sentimentos e emoções contraditórios. Cada qual tem o direito de exprimir os seus sentimentos, que podem ser inteiramente diferentes de um indivíduo para o outro e que, como tudo no mundo, estão sujeitos a serem discutidos e criticados. Por isso mesmo, porém, as regras que possibilitam a coexistência de todas as diferenças – como, por exemplo, a de que ninguém tem o direito de impor os seus sentimentos aos outros – não podem deixar de ser universais e racionais.

6.3.07

Convite


Por ocasião do lançamento do livro Entre nós (Rio de Janeiro, ed. Língua Geral), organizado por Luiz Ruffato e composto de dezenove contos sobre a questão da homossexualidade, terá lugar, na livraria Argumento (Rua Dias Ferreira, 417, Leblon, Rio de Janeiro), amanhã, 7/3, às 19:00 h, um debate sobre homossexualidade e literatura com a participação dos escritores Denilson Lopes, Luiz Rufato e Silviano Santiago.


5.3.07

Nicolás Gómez Dávila

Tendo atacado a ofensiva ideológica reacionária que está tendo lugar em nossos dias, permito-me citar um dos pensadores mais reacionários e brilhantes do século XX, o colombiano Nicolás Gómez Dávila:

“Gran escritor no es el que carece de defectos, sino el que logra que sus defectos no importen”.

4.3.07

Entrevista a Rafael Cariello

A seguir, publico a entrevista que dei a Rafael Cariello, da Folha de São Paulo, e que foi publicada ontem (03/03/2007) na Ilustrada. Devido a questões de espaço, o jornal editou ligeiramente a entrevista. Publico-a aqui na versão integral.

"HÁ UMA OFENSIVA REACIONÁRIA NO PAÍS"
O filósofo e poeta Antonio Cicero diz que é preciso deender a modernidade e a razão contra ataques da esquerda e da direita

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

O filósofo e poeta Antonio Cicero diz que há uma ofensiva reacionária no Brasil, que se expressa numa crítica à razão e às conquistas da modernidade. Para o autor de livros de ensaios como "Finalidades Sem Fim" (Companhia das Letras) e de letras de canções como "O Último Romântico", não se trata de tomar o partido da esquerda contra a direita nessa batalha -pois, ele diz, ambas podem andar de mãos dadas no desprezo à democracia, tratada pela esquerda como um sistema "formal", expressão cujo significado facilmente se converte em "ilusório" ou "falso". "A esquerda, de maneira geral, está longe de defender as conquistas da modernidade: ao contrário, ela é a primeira a tentar desmoralizá-las. Ora, quem se beneficia com isso, senão exatamente os reacionários antimodernos?", diz. Cícero comenta a entrevista do professor da PUC-SP Luiz Felipe Pondé, publicada em 7 de janeiro, na qual comentava o fracasso da promessa de felicidade e progresso advinda com a modernidade e propunha uma atitude de "dúvida conservadora". Discute também o artigo do filósofo Renato Janine Ribeiro, publicado no Mais! em 18 de fevereiro, no qual o professor defendia a idéia de que os sentimentos também deveriam exercer um papel crítico sobre a razão.

- Você acredita que está em cena hoje uma "ofensiva da direita", do conservadorismo. Onde e como ela se dá?

Creio que estamos testemunhando, de fato, uma grande ofensiva ideológica por parte dos conservadores ou, melhor dizendo, dos reacionários, uma vez que se trata de pessoas menos interessadas em conservar coisa alguma do que em retornar a um passado idealizado. Penso que deve ser reconhecido ao professor Luiz Felipe Pondé o mérito de ter, na sua entrevista à Folha, corretamente definido os campos em luta. Tendo em mente que, onde se lê "conservador", deve-se ler "reacionário", trata-se, de fato, de uma "peleja entre o pensamento conservador e a modernidade". Curiosamente, Pondé inverte o sentido dessa peleja, ao contrastar a "dúvida conservadora" à "certeza moderna". Ora, a primeira característica do pensamento moderno é o contrário da certeza, isto é, a dúvida e a crítica universais, sem fronteiras, e a característica dominante do pensamento pré-moderno – por exemplo, do pensamento da Idade Média, que, segundo o próprio Pondé, era "tão boa" – é a vigência da fé, que não passa de uma certeza inteiramente destituída de fundamento: pois uma certeza fundamentada não se chama "fé", mas conhecimento. Pois bem, o pensamento reacionário é pré-modernista. A luta, portanto, é entre, por um lado, a modernidade, que garante, através da institucionalização de sociedades laicas e abertas, a dúvida e a crítica, que constituem a racionalidade, e, por outro lado, o pré-modernismo, que, nostálgico da comunidade religiosa fechada, sonha com regimes teocráticos, em que a dúvida e a crítica são reprimidas pelo terror.

- Por que essa ofensiva o incomoda?

Porque é concebível que a demagogia reacionária e religiosa, aliada ao terrorismo, também reacionário e religioso, consiga piorar muito o mundo. Quem poderia imaginar que, logo nos Estados Unidos, o congresso tenha aprovado no ano passado uma lei proposta por Bush que, em determinados casos, põe fora de ação um dos fundamentos do Estado de direito, que é o habeas corpus, e que admite a tortura? Fico mais do que incomodado, fico indignado com semelhantes tentativas de destruir aquilo que foi conquistado a duras penas pela racionalidade moderna: o Estado de direito, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual, a abertura do mundo a novas possibilidades, a diversidade de culturas e formas de vida, a pluralidade de expressões eróticas, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc.

- A esquerda dá a impressão (e é retratada assim) de ser a portadora de idéias que envelheceram e, dona de grandes esquemas, parece não ser capaz de apresentar respostas aos problemas imediatos da sociedade e das pessoas. Ela tem sua parcela de responsabilidade nessa "virada" ideológica recente?

Sem dúvida: tanto as esquerdas marxistas quanto as "novas" esquerdas. Desde pelo menos Marx, a contradição que aponto, entre o pensamento conservador ou reacionário e o pensamento moderno, é erroneamente relegada a segundo plano, quando não a uma "superestrutura" epifenomênica. A partir de dogmas materialistas e economicistas, o que conta, para os marxistas, são as contradições nas relações de produção. Resultado: todas as conquistas da racionalidade moderna que acabo de mencionar são tidas como relativamente espúrias, pertencentes, não à democracia simplesmente, mas à "democracia burguesa", que, por sua vez, é tida como meramente formal: e, num piscar d'olhos, "formal" passa a significar "ilusório", "falso" ou "mentiroso". A idéia geral é que somente quanto o proletariado ou o "povo" estiver no poder haverá democracia real. Mas, na prática, que significa para os marxistas o "povo" no poder? Se tomarmos por base as experiências socialistas – por exemplo, a de Cuba –, então o "povo" está no poder através do Partido, que está no poder através do Comitê Central, que está no poder através do Grande Líder... Em suma, a "democracia real" é idêntica à ditadura. Compreende-se por que quem pensa assim possa até usar, para chegar ao poder, a democracia formal, mas não a respeite, como não respeita as conquistas da racionalidade moderna. É o que explica o terror (no fundo, pré-modernista) das ditaduras soviética, chinesa, cambodgiana, cubana etc.; como também explica o "mensalão" e o entusiasmo de tantos marxistas pelo populismo chavista.

Quanto às "novas" esquerdas – os "soixante-huitards" ou "pós-modernos" ou "pós-estruturalistas" –, creio que ocorreu o seguinte. Apesar de se terem decepcionado com a esquerda marxista, preferiram abandoná-la de cabeça erguida, trocando o marxismo por uma filosofia pretensamente mais radical do que ele, pretensamente ainda mais capaz de diagnosticar em profundidade e fundamentar o desprezo que sentiam pelo mundo moderno. Buscaram-na sobretudo em Heidegger. Nele, não só encontraram outra racionalização intelectual para o desdém por aquilo que, desde o marxismo, já haviam tido como o embuste do Estado de direito, da democracia formal etc., mas mais ainda: encontraram argumentos para neutralizar os conceitos de humanidade, de subjetividade, de razão.

Ou seja, a esquerda, de maneira geral, está longe de defender as conquistas da modernidade: ao contrário, ela é a primeira a tentar desmoralizá-las. Ora, quem se beneficia com isso, senão exatamente os reacionários anti-modernos? Objetivamente, o marxismo e o pós-modernismo dão as mãos ao pré-modernismo – cristão e islâmico – contra a racionalidade moderna.

- No caso específico do Brasil, essa investida conservadora (no que ela tem de retórica e midiática) pode ser relacionada de alguma maneira com o governo Lula? O quanto ele tem de conservador e o quanto ele incomoda o conservadorismo?

Não considero Lula conservador e aplaudo o fato de que, ao contrário de Chávez, ele respeite a democracia formal. A "democracia direta" defendida por certos setores da esquerda seria, na verdade, uma ditadura plebiscitária, uma ditadura da maioria: e a tirania da maioria pode ser tão ruim quanto a tirania da minoria. Não devemos nos esquecer de que as ditaduras de Mussolini, de Hitler, de Stalin e de Pol Pot eram apoiadas pela maioria, logo, nesse sentido, "democráticas". A razão nem sempre está com a maioria: pode estar até com um homem só. Por isso, o que é realmente imprescindível numa democracia não são as eleições nem o governo da maioria, mas o Estado de direito, o império da lei, a abertura da sociedade, os direitos civis, a liberdade e a pluralidade da imprensa: e tudo isso faz parte da democracia formal.

- Quais são as perspectivas? O que vc espera (e deseja) do futuro do debate público e das relações interpessoais no país?

Espero a consolidação, o aprofundamento e a extensão a todos da racionalidade moderna, que se manifesta nas características que acabo de citar. É hora de rejeitar tanto a demagogia e o romantismo revolucionários quanto a demagogia e o romantismo reacionários, e de defender, em escala mundial, um reformismo profundo e conseqüente. É preciso lutar pela consolidação e o aperfeiçoamento de instituições internacionais que assegurem o respeito universal aos direitos humanos, que devem incluir a garantia de um mínimo de condições dignas de vida a todos.

No que diz respeito ao Brasil, penso, como muitos, que o objeto mais importante das políticas públicas deveria ser a oferta de educação laica e universal de qualidade. Há, entretanto, uma situação emergencial, que é a crise nacional da segurança pública. Cabe ao governo federal, reconhecendo-a explicitamente, traçar e implementar um plano nacionalmente coordenado para enfrentá-la: e tal plano não pode deixar de ter, como uma das suas prioridades, o combate à corrupção policial. O fato é que é inteiramente inaceitável que haja no país áreas urbanas ou rurais que não se submetam ao império da lei.

- O artigo do filósofo Renato Janine Ribeiro parece conceber suspender por um momento a defesa desse "respeito universal aos direitos humanos", ainda que apenas na expressão de um sentimento e de uma dúvida. Como vc viu seu argumento? Ele se relaciona de alguma maneira a esse discurso reacionário que vc diagnostica?

O artigo do Janine me deixou perplexo. Em comum com Pondé, ele manifesta certa nostalgia da Idade Média, ao desejar "suplícios medievais" para os assassinos do menino João Hélio. Quero crer que ele não pense realmente assim, e que se tenha deixado levar pelo calor da emoção momentânea da revolta. No ano passado, participei, com ele, do ciclo de conferências "O silêncio dos intelectuais", organizado por Adauto Novaes. Havia praticamente um consenso entre os conferencistas de que o tempo da reflexão do intelectual não deve ser moldado de modo a atender às exigências imediatistas da mídia. Janine, na sua palestra, intitulada "O cientista e o intelectual", afirmava que o verdadeiro intelectual, ao contrário do intelectual midiático – que, segundo ele, seria mais propriamente chamado de "imidiático" -- não deve agir ou reagir no imediato. Curiosamente, ao escrever o artigo em questão, ele fez exatamente o oposto do que recomendava. De todo modo, considero intolerável, por exemplo, a afirmação de que é preciso criticar os sentimentos pela razão e a razão pelos sentimentos. Só a razão pode criticar a si própria, pois ela é a própria crítica e jamais poderia ser criticada pelos sentimentos, que são pura positividade e que diferem de uma pessoa para outra, quando não, na mesma pessoa, de um momento para o outro. A pretensão a relativizar a razão pelo sentimento, se levada a sério, poria Janine, de fato, no mesmo nível de irracionalismo que Pondé.

- Não seria necessário, para seguir o respeito que a modernidade exige à expressão da dúvida, aceitar a expressão de dúvida de Janine Ribeiro em seu artigo?

De maneira nenhuma. Não pode haver dúvida em relação aos direitos humanos porque exatamente eles constituem, no direito, a expressão mais radical que se pode conceber da dúvida e da crítica, isto é, da razão. Eles se baseiam, por um lado, no reconhecimento do caráter relativo e contingente de todas as leis positivas e particulares. Isso quer dizer que eles se baseiam na desconfiança, na dúvida, em relação a todas essas leis. Por outro lado, eles se baseiam no reconhecimento da falibilidade de todo conhecimento positivo, de todas as intenções e de todas as instituições humanas. Isso também quer dizer que eles se baseiam na desconfiança, na dúvida, em relação ao conhecimento positivo, às intenções e às instituições humanas. Pois bem, são essas desconfianças e dúvidas que me obrigam a reconhecer que não tenho, seja quem eu for, o direito de limitar a liberdade – inclusive, evidentemente, a liberdade da preservação da integridade física – de nenhum outro, senão precisamente na medida em que ele atente contra idêntica liberdade alheia: e somente na medida estritamente necessária para garantir a liberdade ameaçada. Esse é o verdadeiro fundamento dos direitos humanos. Em suma, os direitos humanos não são, como as religiões ou as ideologias, uma construção que possa, como um castelo de cartas, desabar: eles representam antes a consequência do reconhecimento de que todos os castelos de cartas já desabaram.