6.2.07

Entrevista a Francisco Bosco, para a Cult

Aproveito para postar neste blog alguns artigos e entrevistas que, embora já publicados em periódicos, ou bem eu gostaria que tivessem um pouco mais de circulação, ou bem não puderam aparecer integralmente, por questão de espaço. Assim, a seguir, publico a entrevista que dei à revista CULT nº 106, de outubro de 2006. Alguns de seus temas, como o das eleições, já passaram, mas a maior parte continua atual. Orgulho-me do fato de que o poeta e ensaísta Francisco Bosco, que muito admiro, me tenha introduzido aos leitores com palavras tão generosas.



Antonio Cicero é autor de alguns dos mais belos poemas da poesia brasileira contemporânea, os quais só se tornaram públicos, em livro, tardiamente, quando do lançamento de Guardar (Record: 1997), que venceria naquele ano o Prêmio Nestlé de Literatura. A este volume seguiu-se, em intervalo felizmente curto para os leitores, sua nova reunião de poemas, A Cidade e os Livros (Record: 2000). Cicero também vem contribuindo, desde o final da década de 1970, inicialmente com a irmã, a cantora Marina Lima, e depois também junto a diversos outros compositores, com algumas das mais belas canções da música brasileira. Mas esse poeta de dicção sóbria e elegante, de versos a um tempo clássicos e contemporâneos, profundos e superficiais, nítidos e delicados é também um filósofo contundente e cortante, para quem a filosofia não pode perder de vista que sua tarefa fundamental é intervir politicamente, pelo exercício crítico da razão, no mundo. A partir da publicação dos ensaios de O Mundo Desde o Fim (Francisco Alves:1995), Antonio Cicero mostrou-se um intérprete experimentado e original do Brasil e seus impasses, da modernidade e seus paradoxos. No ano passado, Cicero lançou uma nova reunião de ensaios, Finalidades Sem Fim (Companhia das Letras: 2005), em que traz a público sobretudo uma perspectiva da relação entre vanguardas e modernidade que não é menos que incontornável para o debate contemporâneo sobre esses problemas. É o pensamento desse personagem brilhante da cultura brasileira que a CULT ora oferece a seus leitores, em entrevista em que Cicero fala de política e democracia, comenta o saldo do governo Lula, dispara contra os ataques que a racionalidade e a modernidade (no fundo, para ele, uma coisa só) vêm sofrendo no mundo inteiro, discorre sobre as vanguardas, esclarece algumas questões polêmicas da arte contemporânea e fala sobre seu novo livro de poemas. O leitor poderá comprovar que, subjacente a tudo, o que rege esse pensamento é um imperativo da liberdade, contra os que abertamente a atacam e contra aqueles que, pensando estarem defendendo-a, estão no fundo agindo como seus inimigos. Francisco Bosco


CULT - Vamos começar falando de seu livro mais recente, Finalidades Sem Fim (Companhia das Letras, 2005). Nele, você defende que “o fim da vanguarda não é o fim da modernidade, mas, ao contrário, a sua plena realização”. Gostaria de que você explicasse, primeiramente, por que não pode haver, hoje, uma arte de vanguarda; e, em seguida, por que essa própria impossibilidade, ao invés de decretar o fim da modernidade, como muitos pensam, atesta a sua “plena realização”.

ANTONIO CICERO - Não pode mais haver arte de vanguarda porque a vanguarda já cumpriu sua função e nem precisa nem pode fazê-lo mais de uma vez. Como se sabe, “vanguarda”, de “avant-garde”, significava originalmente o destacamento adiantado, precursor, que indicava o caminho pelo qual se daria o progresso do grosso do exército. A idéia de vanguarda pressupõe, portanto, a de progresso. De que progresso se trata, no caso da arte? Não existe progresso propriamente artístico ou estético. Quem é melhor, por exemplo, do que Homero, que conhecemos como o primeiro poeta, do ponto de vista cronológico, do Ocidente?
Por outro lado – para ficarmos no exemplo da poesia – é possível haver progresso cognitivo, permitido principalmente graças ao emprego da escrita. Esse progresso pode ser considerado como uma espécie de desprovincianização ou cosmopolitização da poesia. Trata-se do reconhecimento de que as formas tradicionais de se fazer poesia não são as únicas possíveis; de que podemos empregar formas inventadas em culturas diferentes da nossa (como, por exemplo, o haicai); de que podemos recuperar formas antigas (como a sextina), de que podemos inventar novas formas (como o faz a poesia concreta): trata-se, portanto, do reconhecimento de que não podemos a priori excluir nenhuma forma, nenhuma experimentação. Isso significa também reconhecer que a poesia não se encontra em técnica nenhuma: que ela não consiste em técnica nenhuma. Ora, foi a vanguarda que acelerou o processo que nos obrigou a esse reconhecimento. Ao chegarmos a esse ponto, porém, ela já cumpriu a sua função e só lhe resta deixar de existir.
Ainda há, é claro, poesia experimental. Em certo sentido, uma vez que a poesia não é uma técnica, toda poesia de verdade é experimental: mas mesmo a poesia que se considera mais propriamente experimental, por pesquisar novas linguagens, novas técnicas etc., já deixou de ser de vanguarda, pois se encontra apenas ao lado, mas não à frente, nem sequer do ponto de vista cognitivo, das outras formas, todas igualmente legítimas, de poesia.
Pois bem, uma das características da modernidade é exatamente a desprovincianização, comopolitização e universalização do mundo: as vanguardas (às vezes involuntariamente) levaram a cabo esse processo na esfera das artes. Assim, tendo cumprido sua missão, elas deixaram de existir.

CULT - Em Teoria da vanguarda, Peter Bürger afirma que as vanguardas são um movimento de contestação da “instituição arte”, o que difere essencialmente de apenas uma ruptura com princípios estéticos de um momento histórico imediatamente anterior. Trata-se de uma tentativa de reconectar a arte com a praxis vital, desligamento que teria ocorrido, progressivamente, segundo Bürger, com o advento da burguesia e a perda da função social da arte. O que você pensa sobre isso?

AC - Em primeiro lugar, penso que Bürger comete um erro ao identificar a vanguarda, basicamente, com o dadaísmo e o surrealismo e, em particular, com o momento anti-arte desses movimentos, desprezando os vários modernismos: ou pior, anacronicamente relegando-os a um momento histórico anterior. Onde ficam, por exemplo, o simbolismo, o expressionismo, o suprematismo, o construtivismo? Mesmo o cubismo, que ele cita, no fundo não cabe no esquema dele, pois não contesta a instituição arte. A vanguarda que Adorno defende, por exemplo – Kafka, Schönberg, Beckett –, nada tem a ver com a dele. E que dizer dos “nossos” Mallarmé, Pound, Joyce?
A verdade é que as vanguardas foram várias e apenas uma parte pequena, embora ruidosa, dela foi anti-arte. De todo modo, independentemente das intenções que tiveram, parece-me que, ao contrário do que supõe Bürger, um dos resultados cognitivos da atuação contraditória das vanguardas acabou sendo exatamente a realização plenamente autoconsciente da autonomia da arte, que, embora descoberta pelo pensamento filosófico desde Kant, não havia sido incorporada pelo pensamento propriamente artístico antes dessa atuação.
De todo modo, penso que a autonomia da arte foi uma descoberta (não uma invenção) da filosofia moderna. É verdade que, entre as condições para que ela pudesse ser percebida, estavam o colapso da hegemonia do pensamento cristão, por um lado, e o impulso do pensamento crítico, por outro; e que isso, por sua vez, torna-se possível a partir do ressurgimento do individualismo e da vida urbana, do crescimento da burguesia, da decadência do feudalismo, da reforma, do humanismo etc. Essas são, aliás, também as condições para o surgimento da ciência moderna. Pois bem, assim como não se pode dizer que, em conseqüência da pressuposição dessas condições, a ciência moderna seja ideológica, tampouco se pode dizer que a autonomia da arte o seja.
A autonomia da arte significa que ela não pode ser confundida com a vida, nem ser posta a serviço dela ou de qualquer outra coisa. É necessário que haja uma esfera da atividade humana que valha por si, isto é, que seja capaz de instrumentalizar todas as demais, sem ser, ela mesma, enquanto tal, instrumentalizável. Essa é a esfera da arte. São aqueles que não gostam de arte, aqueles que querem explorar a arte, os parasitas – religiosos, políticos, mercantis – da arte, que lhe querem atribuir uma função social. A esse propósito, costumo lembrar o extraordinário título de um livro de Carlos Drummond de Andrade: A vida passada a limpo. Dizer que a poesia é a vida passada a limpo é dizer que a vida é o rascunho da poesia. Isso significa que o fim da vida é virar poesia. Por essa razão, longe de ser um meio (por exemplo, um meio de “expressão” ou de “comunicação”) para o poeta enquanto poeta, a poesia é o seu fim. Ora, dado que o fim subordina os meios, e não vice-versa, não é o poeta que instrumentaliza a poesia, mas a poesia que instrumentaliza todo o intelecto, toda a sensibilidade, toda a intuição, toda a razão, toda a experiência, todo o vocabulário, todo o conhecimento, todo o senso de humor, toda a cultura do poeta.
Assim, numa época em que “tempo é dinheiro” (ou poder), a poesia se compraz em esbanjar o tempo do poeta. Mas o poema em que a poesia esbanjou o tempo do poeta é aquele que também dissipará o tempo do leitor ideal, que se permite flanar pelas linhas dos poemas que merecem uma leitura ao mesmo tempo vagarosa e ligeira, auscultativa e conotativa, prospectiva e retrospectiva, linear e não-linear, imanente e transcendente, imaginativa e precisa, intelectual e sensual, ingênua e informada. E esse jogo livre das faculdades vale por si e não em virtude de qualquer outra coisa: o seu valor é imanente.

CULT - Pergunto-me se essa sua defesa intransigente da autonomia da arte não implica a afirmação da “pureza” da arte e da estética e, em conseqüência, se ela não recai num extremo formalismo.

AC - Não, porque não há uma faculdade especificamente estética. Na arte, o conteúdo é forma e a forma é conteúdo. Assim como o artista usa todas as suas faculdades para produzir a obra, assim também aquele que a aprecia esteticamente usa, para tanto, todas as faculdades de que dispõe. Como eu disse, a razão, o intelecto, a sensibilidade, a intuição, o humor etc.: tudo entra em jogo, quando se julga uma obra de arte. Quando leio um poema, por exemplo, não ponho entre parênteses a política, tal como se manifesta naquela obra; entretanto, a política se converte em apenas um dos elementos através dos quais julgo aquela obra: e ela é mediatizada por todos os demais, que, por sua vez, são por ela mediatizados.

CULT - No ensaio “Poesia e paisagens urbanas” você afirma, em determinado ponto, que “o poeta moderno – e ‘moderno’ aqui quer dizer: que vive depois que a experiência da vanguarda se cumpriu – é capaz de empregar as formas que bem entender para fazer os seus poemas...” Isso significa que agora vale tudo?

AC - Não. O que isso significa é simplesmente o reconhecimento do fato de que não se pode, a priori, determinar o que é que vai valer e o que é que não vai valer como poema; ou o que é que vai valer e o que é que não vai valer num poema. E é evidente que não se pode determinar a priori (mas jamais se pôde, de fato) o que é que vai valer como um poema bom e o que é que não vai valer como tal. A verdade é que não há critérios abstratos e universais para determinar se um poema é bom ou não é. É preciso examinar caso por caso. Temos que inventar os critérios do juízo de cada poema. É de fato assim e é assim que deve ser.

CULT - Mas há quem diga, por exemplo, que uma forma tão gasta quanto a do soneto não pode mais ser usada, a não ser ironicamente. O que você pensa disso?

AC - Não posso aceitar nem mesmo essa regra. Há algumas décadas, afirmava-se peremptoriamente que o soneto estava morto. Afinal, trata-se de uma forma desenvolvida na Idade Média, sete ou oito séculos atrás, e prodigamente usada e abusada, em todas as línguas européias modernas. Como poderia resistir ao novo mundo do telégrafo, do telefone, da televisão? Mas hoje é impossível negar a qualidade e a atualidade dos sonetos de Paulo Henriques Britto, por exemplo. Para explicar essa incongruência, apela-se então, ad hoc, à ironia: os sonetos de Paulo Henriques Britto seriam exceções, graças à ironia. Pois bem, os sonetos de PHB foram escritos uns sete séculos depois dos de Petrarca. Em 1985, uns quinze anos antes dos sonetos de PHG, mas ainda uns sete séculos depois de Petrarca, Jorge Luiz Borges publicou inúmeros sonetos, que são verdadeiras obras-primas, no seu livro Los conjurados. Serão irônicos? Não mais do que toda a obra de Borges. Em todo caso, não são nada irônicos em relação ao soneto enquanto forma. Alguns anos antes, mas ainda uns sete séculos depois de Petrarca, Drummond publicara, sem ironia, outros tantos sonetos que também são obras-primas. Um pouco antes, mas também séculos depois de Petrarca, Rilke, Yeats, Mallarmé... e assim por diante. Como se pode decretar que não surgirão sonetos extraordinários nos próximos anos? Ou decretar como devem ser para serem aceitos? É claro que há sonetos e sonetos, e que quase todos os sonetos são ruins. Mas a verdade é que quase todos os poemas são ruins. Por que essa mania de cagar regras? A única regra necessária é: julgue-se caso por caso, e sempre a posteriori.

CULT - Outra questão importante de seu livro é aquela sobre a relação entre poesia e filosofia. A contrapelo de uma forte tendência do século XX, que é a da mistura dos gêneros, você defende uma nítida delimitação entre a filosofia e a poesia. Por quê?

AC - O questionamento dos gêneros artísticos é inevitável, pois faz parte do processo moderno de crítica e questionamento de tudo o que não se justifique racionalmente. Do mesmo modo, é exatamente porque não se justifica racionalmente exigir que determinado preceito seja seguido, na feitura de um poema, que não podemos excluir nenhuma forma a priori. Tudo o que não se justifica racionalmente, tudo o que se baseia meramente em convenção ou tradição é para nós, modernos, preconceito. Assim ocorre com os gêneros artísticos. Entretanto, nem tudo é arte. Existem também a vida prática, a ciência, a filosofia, a tecnologia, a moral, a política, a religião... E a tentativa de reduzir tudo à mesma coisa (como confundir religião e política, ciência e religião, política e ciência, moral e religião etc.) não apenas não é racional, mas é nociva. Ela só se justificaria se essas distinções fossem meros produtos da convenção ou da tradição. Mas não é assim. Essas distinções são também racionais. Enquanto, por exemplo, num poema, um enunciado funciona como um objeto estético, de modo que, enquanto poema, ele não cumpre nenhuma função prática (que importa, para quem lê “No meio do caminho” se algum dia houve realmente uma pedra no caminho de Drummond?), fora da poesia os enunciados normalmente funcionam como atos que cumprem funções práticas, tais como interrogar, ordenar, agradecer, informar, orientar, afirmar etc. Assim, dizer que filosofia e poesia são a mesma coisa é ou bem atribuir funções práticas à poesia (o que atenta contra a autonomia da arte que aqui defendo, de modo que, a meu ver, prejudica a poesia) ou bem retirar as funções práticas – cognitivas e racionais – da filosofia (o que conduz ao irracionalismo e incorre em autocontradição performativa, pois a afirmação de que a filosofia não é capaz de conhecer coisa alguma, sendo de natureza filosófica, nega a sua própria pretensão cognitiva).

CULT - Diferentemente do que se passa com a literatura, em que, apesar da insularidade do português, o Brasil possui obras de indisputável valor e reconhecimento internacional (como as de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector), parece não haver uma produção filosófica original no Brasil. Muniz Sodré argumenta que uma tal originalidade estaria numa certa “historiosofia” brasileira, que incluiria as obras de Gilberto Freyre, Sergio Buarque, etc. O que você pensa a respeito?

AC - Penso que toda filosofia é pensamento, mas nem todo pensamento – nem mesmo todo pensamento profundo – é filosofia. Temos grandes pensadores nas áreas das artes, da literatura, da história etc., mas não devemos escamotear as nossas fraquezas: o fato é que não ainda não temos uma tradição filosófica e devemos nos esforçar para construí-la.

CULT - Você pratica a filosofia, o poema e a letra de música; como é a convivência desses três registros díspares na sua produção? Em algum momento é uma relação conturbada? Há alguma dessas práticas que lhe dá maior prazer? Você se sente mais filósofo, mais poeta, mais letrista - ou não existe essa espécie de centro?

AC - A relação é muitas vezes conturbada, porque cada uma dessas coisas exige o meu tempo, e este é cada vez mais escasso. A prática que me dá maior prazer é a de fazer um poema. E é a que exige mais de mim. A de filosofia, porém, é mais urgente, porque representa uma intervenção, em última análise, política, no mundo. É como se eu tivesse obrigação moral de dizer o que penso ter compreendido através do pensamento filosófico. A prática de fazer letra de música é diferente porque, no meu caso, ela só pode ser feita com um parceiro. Considero-me privilegiado por ter parceiros que são meus amigos e que admiro imensamente, como Marina Lima, Adriana Calcanhotto, João Bosco, Lulu Santos, Orlando Moraes. Mas é claro que não tenho tanta liberdade quanto quando escrevo um poema, já que a letra é feita para fazer parte de uma canção. Por um lado, é um trabalho mais fácil, porque a melodia e as idéias do próprio parceiro sobre a canção a ser feita podem ajudar a desencadear o processo de composição; por outro lado, é mais difícil, justamente por envolver outra pessoa. Quanto a me considerar mais isto ou aquilo, considero-me poeta, em primeiro lugar.

CULT - Assim como há, para você, uma diferença fundamental entre poesia e filosofia, há também quanto ao poema e a letra de música? Quando você escreve um poema ou uma letra, são técnicas distintas que estão em jogo?

AC - A principal diferença é, naturalmente, que a letra é heterotélica (tem seu fim fora de si, na canção), enquanto o poema é autotélico (tem seu fim em si próprio). As técnicas são diferentes porque, normalmente, faço uma letra para uma melodia já existente. Por um lado, levo em conta o clima geral da melodia, que me sugere logo algumas idéias; por outro lado, essa melodia funciona como uma forma fixa, que me obriga a determinada métrica, determinado ritmo etc. O que importa, quando faço uma letra, é que ela contribua para a produção de uma grande canção, e não que seja um grande poema.

CULT - Sua poesia é clara, nítida, você trabalha muitas vezes com formas fixas, é um admirador declarado do poeta latino Horácio, lê grego antigo e até homérico; pode-se dizer que, sem prejuízo de sua contemporaneidade, Antonio Cicero é um poeta clássico?

AC - Na verdade, sou a última pessoa a querer qualificar a minha produção poética, pois entendo as qualificações como restritivas. No caso de “clássico”, um outro problema me inibiria: é que entendo a palavra no sentido definido por Naphta, personagem de A montanha mágica, de Thomas Mann. Segundo ele, clássico é o ponto em que uma idéia chega à sua culminância. Nesse sentido, seria até cabotino que eu me chamasse de clássico. Por outro lado, mesmo não me qualificando de clássico, é verdade que amo a literatura e as línguas clássicas, que não considero estrangeiras, mas nossas. Acho que latim e grego deviam voltar a fazer parte do currículo primário.

CULT - Você estudou lógica em sua formação filosófica, tem em Kant talvez sua principal referência filosófica e define-se como um racionalista liberal. A política mundial, entretanto, está polarizada por fundamentalismos religiosos e ameaçada por populistas obtusos com ideologias retrógradas. Você acha que o mundo está se tornando cada vez mais irracional?

AC - Em certo sentido, sim. Mas penso que o irracionalismo contemporâneo é principalmente uma reação às possibilidades de liberdade que o mundo contemporâneo oferece. Por medo da sociedade aberta, busca-se refúgio em comunidades fechadas, como as religiosas. E uma sociedade é tanto mais fechada quanto mais irracional, pois a racionalidade é, em princípio, aberta e universal. É um equívoco pensar que exista um conflito entre o Ocidente, ou os valores do Ocidente e os valores islâmicos, por exemplo. O conflito que há é entre a modernidade (que não é ocidental ou oriental, mas universal) e a pré- ou anti-modernidade, que pode ser muçulmana, cristã (como no sul dos Estados Unidos) etc. Dentro dos Estados Unidos mesmos, esse conflito é muito grave. Com o governo Bush, uma parcela relativamente pequena, porém totalmente inescrupulosa da burguesia norte-americana, sob a liderança das corporações petrolíferas e armamentistas, e aliada às maiores cadeias de televisão, rádio e da imprensa do país, procura destruir os fundamentos da sociedade aberta e os direitos individuais, e promover o obscurantismo religioso, como caminho para a instauração de um governo plutocrático descarado e cínico. Tentam, por exemplo, arruinar o sistema de checks and balances que mantinha separados os poderes executivo, legislativo e judiciário. Este último está sendo objeto de uma campanha de desmoralização tremenda, posta em prática pelo governo Bush e pela imprensa de direita. Para cumprir sua agenda anti-moderna, o governo Bush tem como aliados objetivos os terroristas muçulmanos. Não acredito em inevitabilidade histórica. Até pouco tempo, era senso comum na esquerda que os democratas e republicanos eram farinha do mesmo saco. Hoje, é claro que a diferença entre o governo Clinton e o governo Bush não poderia ser maior. Penso que a racionalidade – como a ciência – tende a se impor porque ela é o chão onde se quebram as ilusões que acabam por cair, pois, ao contrário destas, ela não é nada de particular ou contingente, mas algo de universal e necessário; entretanto, não é impossível que os irracionalistas consigam destruir o mundo.

CULT - Você afirma que “o paradoxo do Brasil está em, sendo capaz de oferecer a prefiguração da solução de alguns problemas que poucos países conseguem efetivamente enfrentar, não ter conseguido efetivamente enfrentar alguns problemas que muitos outros países já resolveram total ou parcialmente”. Você acha que, quanto a este paradoxo, o Brasil mudou nesses últimos anos de economia mais estável e consolidação da democracia?

AC - Acho que tem melhorado, mas muito lentamente.

CULT - Como você avalia o governo Lula? Você votou nele nas últimas eleições? Pretende votar na de agora?

AC - O PT tinha tornado o governo Fernando Henrique quase inoperante, fazendo incessantemente denúncias incomprovadas porém paralisantes, e bloqueando todas as reformas que se faziam necessárias e que, ao chegar ao poder, o próprio Lula tentaria realizar. Era a política do “quanto pior, melhor”. Indignado com essa política, que prejudicava o Brasil como um todo, votei no Serra, no primeiro turno. Depois, comecei a achar que, se o Serra ganhasse o segundo turno, haveria uma radicalização imensa no PT, pois ganhariam força os militantes que, acusando a democracia de ser puramente formal, e alegando que “as elites brasileiras” jamais deixariam um operário chegar a ser presidente, queriam, no fundo, promover uma guerra civil. Além disso, seria ainda mais difícil para o Serra governar do que havia sido para o FH.
Pareceu-me então, primeiro, que a experiência de ter um presidente de origem operária seria realmente importante para consolidar a democracia brasileira; segundo, que a sua vitória enfraqueceria essas correntes anti-legalistas no interior do PT; terceiro, que ele teria maior capacidade de governar do que o Serra. Votei, então, no Lula.
Quanto ao governo dele, tenho sentimentos contraditórios. Não posso senão aplaudir o fato de que ele tenha conseguido, segundo todas as pesquisas, reduzir significativamente – embora ainda pouco – a pobreza e a desigualdade social no Brasil. Aplaudo também o fato de que ele tenha conseguido fazer isso sem abrir mão de continuar a controlar a inflação. Para mim, isso é muito importante, pois sou de uma geração que conheceu o horror da inflação descontrolada.
Por outro lado, é claro que fiquei indignado com o mensalão. Quero crer, porém, que ele foi concebido principalmente por membros daquela corrente do PT que despreza a democracia formal e que me parece ter saído enfraquecida com esse episódio.
Quanto às próximas eleições, eu talvez votasse no Serra, se ele fosse candidato; mas não voto no Alkmin, cujas ligações com a Igreja Católica não são claras, para mim. Convencido de que os pontos positivos do governo Lula são maiores do que os negativos, vou provavelmente votar nele. A única coisa que me deixa receoso é essa idéia golpista de convocar uma constituinte. Acho que ele devia publicamente voltar atrás, nessa questão. Tenho horror à idéia de uma democracia plebiscitária, isto é, de uma ditadura da maioria. Não devemos nos esquecer de que as ditaduras de Mussolini, de Hitler, de Stalin e de Pol Pot eram apoiadas pela maioria, logo, nesse sentido, “democráticas”. A razão nem sempre está com a maioria: pode estar até com um homem só. Por isso, o que é realmente imprescindível numa democracia não são as eleições nem o governo da maioria, mas o império da lei, a abertura da sociedade, os direitos civis, a liberdade e a pluralidade da imprensa.

CULT - O que você acha do Estatuto de Igualdade Racial?

AC - Sou inteiramente contra. Não há raças humanas. Os norte-americanos brancos racionalizaram e oficializaram o seu racismo com base na crença nas ficções que são as raças biológicas. Os próprios movimentos anti-racistas americanos acreditaram nessas ficções e nelas se basearam. Por isso, pensam que o racismo é um fenômeno universal, e que negar que ele exista seja uma forma mais insidiosa de praticá-lo. Aqui, nunca se acreditou propriamente em raça. Reconhecemos apenas diferenças epidérmicas entre as pessoas. Por isso, as raças nunca foram oficializadas, o que é bom; e isso facilitou a miscigenação, o que tornou ainda mais inaplicável o conceito de raça. Como eu digo no meu ensaio “Brasil feito brasa”, no Brasil, ao contrário do que se dá nos Estados Unidos, a exceção é o negro, o branco ou o índio que se considere "puro". Pode dizer-se que, aqui, cada ser humano parece resultar de uma combinação singular de características de cada uma dessas e de outras raças. Longe de significar homogeneização racial, isso sugere que, no limite, cada brasileiro tende a ser a expressão de uma raça individual. Esse oximoro exprime o fato de que, através não da redução, mas da multiplicação das diferenças, entrevê-se no Brasil, a longo prazo, a pulverização -- ou melhor, a dissolução -- racial. Devemos fazer campanhas anti-racistas, não com base na ficção da existência de raças, mas, ao contrário, na demonstração de que crer em tais ficções não é coisa digna de uma pessoa inteligente. Mas, principalmente, devemos promover a eliminação de qualquer pretensão racista, através do aprofundamento das políticas que contribuam para reduzir as desigualdades sociais – que, estas sim, são inteiramente reais – e através de investimentos maciços que, efetivamente, universalizem o acesso a uma educação elementar e média de qualidade.

15. Fale sobre o seu novo livro de poemas.

Diferentemente dos outros, comecei esse livro com um título, que no entanto, talvez seja modificado: Prova. É que esse foi o título do primeiro poema que escrevi para ele. Também diferentemente dos outros, fiz um projeto para esse livro, de modo a poder solicitar a Bolsa Vitae, para escrevê-lo. De fato, felizmente, fui contemplado com essa bolsa, sem a qual não creio que tivesse podido terminá-lo tão cedo. O livro me parece ter ficado muito diferente dos outros, mas não sei dizer bem em que sentido. Não planejei essa diferença. Não sou de planejar. Gosto de deixar o poema se descobrir para mim e de tratar o acaso como se fosse o destino. Mas o fato é que eles foram ficando diferentes. Alguns, por exemplo, são mais longos do que o que era normal para mim. Alguns são mais narrativos. Não dá para falar muito, porque, sinceramente, não sei bem falar sobre os meus próprios poemas.

2 comentários:

Héber Sales disse...

Caro Cicero,

Que entrevista instigante. Estou aqui cheio de curiosidades.

Olha só. Se a desprovincialização da poesia nos permite todas as formas, se a poesia hoje não consiste em nenhuma forma específica, o que é poesia afinal? O que a distingue de outros gêneros?

Outro ponto que me chamou a atenção foi aquele a respeito do que seja um bom poema. Tudo bem que não haja critérios universais para avaliar responder à questão, que seja preciso definir critérios caso a caso, mas não haveria nesta empreitada norte algum que pudesse ser observado? Ao inventar os parâmetros específicos para julgar o valo de um poema, o crítico não segue princípio nenhum?

Abraços,

Héber Sales

Antonio Cicero disse...

Héber,

Obrigado pelo elogio.
Como você sabe, esses assuntos são muito complexos e sutis, de modo que não é fácil responder em poucas palavras e, infelizmente, no momento estou quase sem tempo nenhum.
Falo sobre eles em detalhe no meu livro "Finalidades sem fim".
Tanto sobre o que distingue a poesia de outros gêneros quanto sobre o valor de um poema, um dos caminhos que tenho seguido -- mas receio que fique enigmático, aqui, pois não dá para desenvolvê-lo -- diz respeito ao grau de escritura de um texto. Em suma, considero o poema o mais escrito dos escritos. Desenvolvo essa idéia no texto "Poesia e filosofia", do livro "Finalidades sem fim". Alguns trechos desse texto se encontram na Internet, no endereço

www.ciencialit.letras.ufrj.br/
entrelugares
/resumo_antoniocicero.doc.

Dê uma olhada.

Abraço,
Antonio Cicero